a letra e o sonho
EL CARACOL Y LA SIRENA (RUBÉN DARÍO)
O Caracol e a Sereia (Rubén Darío) por Octavio Paz (1964)
tradução de Alexandre Marzullo.
I
...La raza
Que vida com los números pitagóricos crea
Rubén Darío
Nossos textos escolares chamam de 'séculos de ouro' os XVI e o XVII; Juan Ramón Jiménez dizia que eram séculos de cartão dourado. Mais justo seria dizer: séculos da fúria espanhola. Com o mesmo frenesi com que destruíram e criaram nações, os espanhóis escrevem, pintam, sonham. Extremos: são os primeiros em dar a volta ao mundo e os inventores do quietismo. Sede de espaço, fome de morte. Abundante até o desperdício, Lope de Vega escreve mil comédias e mais um pouco; sóbrio até em sua parcimônia, a obra poética de San Juan de la Cruz se reduz a três poemas e umas quantas canções e coplas. Delírio alegre ou reconcentrado, sangrento ou pio: todas as cores e todas as direções. Delírio lúcido em Cervantes, Velázquez, Calderón; labirinto de conceitos em Quevedo, selva de estalactites verbais em Góngora. E de repente, como se tratasse do espetáculo de um ilusionista e não de uma realidade histórica, o cenário se despovoa. Não há mais nada, e menos que nada: os espanhóis vivem uma vida ao redor de fantasmas. Seria inútil buscar em todo o século XVIII um Swift ou um Poe, um Rousseau ou um Laclos. Na segunda metade do século XIX, aqui e ali surgem tímidas manchas de verdor: Bécquer, Rosalía de Castro. Mas nada que se compare a Coleridge, Leopardi ou Hölderlin; nada que se pareça a Baudelaire. A finais de século, com idêntica violência, tudo muda. Sem prévio aviso irrompe um grupo de poetas: de início, poucos os escutam e muitos desprezam-nos. Alguns anos depois, por obra daqueles que a crítica tinha chamado de párias e “afrancesados”, o idioma espanhol se põe de pé. Estava vivo. Menos opulento do que no século barroco, mas também menos enfático. Mais afiado e transparente.
O último poeta do período barroco foi uma monja mexicana: Sor Juana Inés de la Cruz. Dois séculos mais tarde, nessas mesmas terras americanas, apareceram os primeiros brotos da tendência que devolveria ao idioma a sua vitalidade. A importância do modernismo é dupla: de um lado, proveu quatro ou cinco poetas que retomam a grande tradição hispânica, já decadente ou interrompida ao findar do século XVII; de outro, ao abrir portas e janelas, reanimam o idioma. O modernismo foi uma escola poética; também foi uma escola de dança, um campo de treinamentos físicos, um circo e um baile de máscaras. Depois dessa experiência o castelhano pode suportar provas mais rudes e aventuras mais perigosas. Entendido como o que realmente foi – um movimento cujo fundamento e meta primordial era o movimento nele mesmo –, o modernismo ainda não terminou: a vanguarda de 1925 e as tentativas da poesia contemporânea estão intimamente ligadas a esse grande começo. Em seus dias, o modernismo suscitou adesões ferventes e oposições menos veementes. Alguns espíritos o receberão com reserva: Miguel de Unamuno não escondeu sua hostilidade e Antonio Machado procurou guardar as distâncias. Não importa: ambos estão marcados pelo modernismo. Seu verso seria outro sem as conquistas e achados dos poetas hispano-americanos; sua dicção, sobretudo ali onde pretende separar-se mais ostensivamente dos acentos e maneiras dos inovadores, é uma espécie de homenagem involuntária àquilo mesmo que rechaça. Precisamente por ser uma reação, sua obra é inseparável daquilo que renega: não é o que está mais distante, e sim o que está em frente a Rubén Darío. E nada mais natural: o modernismo era a linguagem de sua época, o seu estilo histórico, e todos os criadores estavam condenados a respirar sua atmosfera.
Toda linguagem, sem excluir a da liberdade, termina por converter-se em um cárcere; e há um ponto em que a velocidade se confunde com a imobilidade. Os grandes poetas modernistas foram os primeiros a se rebelarem, e em sua obra de madurez vão mais além da linguagem que eles mesmos tinham criado. Preparam, assim, cada um à sua maneira, a subversão da vanguarda: Lugones é o antecedente imediato da nova poesia mexicana (Ramón Lopez Velarde) e argentina (Jorge Luis Borges); Juan Ramón Jimenez foi o mestre da geração de Jorge Guillén e Federico García Lorca; Ramón del Valle-Inclán está presente no teatro moderno, e o estará mais e mais a cada dia... O lugar de Darío é central, inclusive se se acredita, como eu acredito, que é o menos atual dos grandes modernistas. Não é uma influência viva, senão um ponto de referência: um ponto de partida ou de chegada, um limite que se deve alcançar ou ultrapassar. Ser ou não ser como ele: de ambas as maneiras, Darío está presente no espírito dos poetas contemporâneos. É o fundador.
A história do modernismo vai de 1880 a 1910 e já foi contada muitas vezes. Relembrarei o essencial. O romantismo espanhol e hispano-americano, com duas ou três exceções menores, rendeu poucas obras notáveis. Nenhum de nossos poetas românticos tinha uma consciência clara da verdadeira significação desse grande movimento. O romantismo de língua castelhana foi uma escola de rebeldia e declamação, mas não uma visão – no sentido que Armin deu à palavra: “Chamamos videntes aos poetas sagrados; chamamos visão de espécie superior a criação poética”. Com essas palavras, o romantismo proclama a primazia da visão poética sobre a revelação religiosa. Entre nós falta também a ironia, algo muito distinto do sarcasmo ou da invectiva: desagregação do objeto pela inserção do eu; desengano da consciência, incapaz de anular a distância que a separa do mundo exterior; diálogo insensato entre o eu infinito e o espaço finito ou entre o homem mortal e o universo imortal. Tampouco aparece a aliança entre sonho e vigília; nem o pressentimento de que a realidade é uma constelação de símbolos; nem a crença na imaginação criadora como a faculdade mais alta do entendimento. Em suma, falta a consciência do ser dividido e a aspiração pela unidade. A pobreza de nosso romantismo resulta ainda mais desconcertante se recordarmos que para os poetas alemães e ingleses a Espanha foi a terra de eleição do espírito romântico: o grupo de Jena descobriu Calderón; Shelley traduziu alguns fragmentos de seu teatro; um dos livros centrais do romantismo alemão, o poderoso e alucinante Titán, está impregnado de ironia, magia e outros elementos fantásticos que Jean-Paul recolheu provavelmente de uma das obras menos estudadas (e mais modernas) de Cervantes: Os trabalhos de Persiles e Segismunda... Quando a onda do romantismo finalmente arrefece, a paisagem é desoladora: a literatura espanhola oscila entre a oratória e a conversa fiada, entre a Academia e os Cafés.
A França havia sido a fonte de inspiração para os nossos românticos. Ainda que nesse país o romantismo não conte com figuras comparáveis às germânicas e saxônicas (se excetuarmos Nerval e o Victor Hugo de Fim de Satã), a geração seguinte nos deixou um grupo de obras que, simultaneamente, consumam a tentativa romântica e a transcendem. Baudelaire e seus grandes descendentes oferecem uma consciência – quero dizer, uma forma significativa – ao romantismo; ademais, e sobretudo, fazem da poesia uma experiência total, a um só tempo verbal e espiritual. A palavra não apenas diz o mundo mas o funda – o transforma. O poema se torna um espaço povoado de signos viventes: animação da escritura pelo espírito, pela alma. No último terço do século XIX as fronteiras da poesia, as fronteiras com o desconhecido, estão na França. Nas obras de seus poetas a inspiração romântica se volta sobre si mesma e se contempla. O entusiasmo, origem da poesia para Novalis, se converte na reflexão de Mallarmé: a consciência dividida se vinga da opacidade do objeto e o anula. Mas os escritores espanhóis, apesar de sua proximidade a esse centro magnético que era a poesia francesa (ou talvez por isso mesmo), não se sentiram atraídos pela aventura desses anos. E por sua vez, insatisfeitos com a bufonaria e a rigidez imperantes na Espanha, os hispano-americanos compreendem que nada de pessoal poderia ser dito em uma linguagem que havia perdido o segredo da metamorfose e da surpresa. Se sentem distintos dos espanhóis, e voltam-se, quase que instintivamente, para a França. Adivinham que ali se gesta não um mundo novo, e sim uma nova linguagem. E decidem tomá-la para si, para que consigam ser mais eles mesmos, e para dizerem melhor o que querem dizer. Assim, a reforma dos modernistas hispano-americanos consiste, em primeiro lugar, em apropriar-se e assimilar a poesia moderna europeia. Seu modelo imediato foi a poesia francesa não apenas porque era a mais acessível, senão porque viam nela, com razão, a expressão mais exigente, audaz e completa das tendências da época.
Em sua primeira etapa o modernismo não se apresenta como um movimento concertado. Em lugares distintos, quase ao mesmo tempo, surgem personalidade isoladas: José Martí em Nova York, Julián del Casal em Havana, Manuel Gutiérrez Nájera e Salvador Díaz Mirón no México, José Asunción Silva em Bogotá, Rubén Darío em Santiago do Chile. Não tardam em travar contato entre si e constatar que suas tentativas individuais formam parte de uma mudança geral na sensibilidade e na linguagem de seu tempo. Pouco a pouco se formam pequenos grupos e cenáculos; brotam as publicações periódicas, como a Revista Azul de Gutiérrez Nájera; as tendências difusas cristalizam-se e coagulam-se em dois centros de atividade, um em Buenos Aires e outro no México. Este é o período da chamada segunda geração modernista. Rubén Darío é o ponto de união entre ambos os momentos. A morte prematura da maioria dos iniciadores, bem como seus dons de crítico e de fomentador o convertem em cabeça visível do movimento. Com maior clareza que seus precursores, os novos poetas têm a consciência de ser a primeira expressão realmente independente da literatura hispano-americana. Não lhes assusta que lhes chamem de párias. Eles sabem que ninguém se encontra consigo mesmo se antes não abandonar a própria origem.
A influência francesa foi predominante, mas não exclusiva. Com a exceção de José Martí, que conhecia e amava as literaturas inglesa e norte-americana, e de Silva, “leitor apaixonado de Nietzsche, Baudelaire e Mallarm锹, os primeiros modernistas passaram do culto dos românticos franceses ao dos parnasianos. A segunda geração, em plena marcha, “agrega às maneiras parnasianas, ricas em visão, as maneiras simbolistas, ricas em musicalidade."² Sua curiosidade era muito extensa e intensa, mas o seu próprio entusiasmo nublava com frequência seu juízo. Admiravam com fervor igual a Gautier e a Mendès, a Heredia e a Mallarmé. Um índice de suas preferências é a série de retratos literários que Rubén Darío publicou em um jornal argentino, quase todos colhidos de Los raros (1894). Nesses artigos, os nomes de Poe, Villiers l’Isle Adam, Léon Bloy, Nietzsche, Verlaine, Rimbaud e Lautréamont alternam com os de escritores secundários e com outros hoje totalmente esquecidos. Aparece unicamente um escritor de língua espanhola: o cubano José Martí; e um português: Eugenio de Castro, o iniciador do verso livre. Em certos casos, o assombroso instinto de Darío: foi o primeiro que se ocupou, fora da França, de Lautréamont. (Na mesma França, senão me engano, apenas León Bloy e Rémy de Gourmont tinham escrito antes sobre Ducasse. Suspeito, ademais, que é o primeiro escritor de língua castelhana que menciona Sade, em um soneto dedicado a Valle-Inclán). A esta lista teríamos de acrescentar, claro, muitos outros nomes. Mas bastará que mencionemos os mais salientes. Em primeiro lugar, Baudelaire, e em seguida, Jules Laforgue, ambos decisivos para a segunda geração modernista; os simbolistas belgas; Stefan George, Wilde, Swinburne, e, mais como exemplo e estímulo que como modelo direto, Whitman. E ainda que nem todos os seus ídolos fossem franceses, Darío disse certa feita, talvez para irritar aos críticos espanhóis que o acusaram de “galicismo mental”: “O modernismo não é outra coisa que o verso e a prosa castelhanas, passados pela fina triagem do bom verso e da boa prosa franceses.” Decerto, seria um erro reduzir o movimento a uma mera imitação da França. A originalidade do modernismo não está em suas influências, mas em suas criações.
Desde 1888, Darío emprega a palavra modernismo para designar as tendências dos poetas hispano-americanos. Em 1896, escreve: “O espírito novo que hoje anima o pequeno, mas triunfante e soberbo grupo de escritores e poetas da América espanhola: o modernismo...”. Mais tarde dirá: os modernos, a modernidade. Durante sua extensa e prolongada atividade crítica, não cessa de reiterar que a nota distintiva dos novos poetas, sua razão de ser, é a vontade de serem modernos. Do mesmo modo que o termo vanguarda é uma metáfora que delata uma concepção guerreira da atividade literária, o vocábulo modernista revela uma espécie de fé ingênua nas excelências do futuro, ou mais exatamente, da atualidade. A primeira implica em uma visão espacial da literatura; a segunda, uma concepção temporal. A vanguarda quer conquistar um lugar; o modernismo busca inserir-se no agora. Apenas aqueles que não se sentem de todo no presente, aqueles que se sabem fora da história viva, postulam a contemporaneidade como meta. Ser coetâneo de Goethe ou de Tamerlain é uma coincidência, feliz ou desgraçada, na qual não intervém a nossa vontade; desejar ser seu contemporâneo implica a vontade de participar, idealmente falando, da gesta do tempo, compartilhar uma história que, sendo alheia, de alguma maneira a tornamos nossa. É uma afinidade, uma distância – e a consciência dessa situação. Os modernistas não queriam ser franceses: queriam ser modernos. O progresso técnico tinha suprimido parcialmente a distância geográfica entre América e Europa. Essa aproximação tornou mais viva e sensível nossa distância histórica. Ir a Paris ou a Londres não era visitar outro continente, mas saltar a outro século. Já foi dito que o modernismo foi uma evasão da realidade americana. Mais correto seria dizer que foi uma fuga da atualidade local – que era, aos seus olhos, um anacronismo – em busca de uma atualidade universal, a única e verdadeira atualidade. Nos lábios de Rubén Darío e de seus amigos, modernidade e cosmopolitismo eram termos sinônimos. Não foram antiamericanos; queriam uma América contemporânea de Paris e Londres.
A manifestação mais pura e imediata do tempo é o agora. O tempo é o que está passando: a atualidade. A distância geográfica e a histórica, o exotismo e o arcaísmo, tocados pela atualidade se fundem em um presente instantâneo: se tornam presença. A inclinação dos modernistas pelo passado mais remoto e as terras mais distantes – lendas medievais e bizantinas, figuras da América pré-colombiana e dos Orientes que nesses anos descobria ou inventava a sensibilidade europeia – é uma das formas de seu apetite de presente. Porém, não os fascina a máquina, essência do mundo moderno, mas as criações da art noveau. A modernidade não é a indústria, mas o luxo. Não a linha reta: o arabesco de Aubrey Beardsley. Sua mitologia é a de Gustave Moreau (a quem dedica uma série de sonetos Julián del Casal); seus paraísos secretos, os de Huysmans de A Rebours; seus infernos, os de Poe e Baudelaire. Um marxista diria, com certa razão, que se trata de uma literatura de classe ociosa, inutilitária historicamente e próxima a extinguir-se. Poderíamos replicar que sua negação da utilidade e sua exaltação da arte como bem supremo são algo mais do que um hedonismo de casa grande: são uma rebelião contra a pressão social e uma crítica à abjeta atualidade latino-americana. Ademais, em alguns desses poetas coincide o radicalismo político com as posições estéticas mais extremas: apenas se é necessário recordar a José Martí, libertador de Cuba, e a Manuel González Prada, um de nossos primeiros anarquistas. Lugones foi um dos fundadores do socialismo argentino; e muitos dos modernistas participaram ativamente das lutas históricas de seu tempo: Valencia, Chocano, Díaz Míron, Vargas Vila... o modernismo não foi uma escola de abstenção política, senão de pureza artística. Seu esteticismo não brota de uma indiferença moral. Tampouco é um hedonismo. Para eles a arte é uma paixão, no sentido religioso da palavra, e exige um sacrifício como todas as paixões. O amor à modernidade não é o culto à moda do dia: é vontade de participação em uma plenitude histórica até então vedada a todos os hispano-americanos. A modernidade não é senão a história em sua forma mais imediata e rica. Mais angustiosa também: instante preenchido de presságios, via de acesso à gesta do tempo. É a contemporaneidade. Decadente e bárbara, a arte moderna é uma pluralidade de tempos históricos, o mais antigo e o mais novo, o mais próximo e o mais distante, uma totalidade de presenças que a consciência pode adquirir em um único momento:
Y muy siglo diez y ocho y muy antiguo
Y muy moderno; audaz, cosmopolita…
Não deixa de ser um paradoxo que, apenas nascida, a poesia hispano-americana se declare cosmopolita. Como se chama essa Cosmópolis? É a cidade das cidades. Nínive, Paris, Nova York, Buenos Aires: é a forma mais transparente e enganosa da atualidade, pois não tem nome e nem ocupa lugar no espaço. O modernismo é uma paixão abstrata, ainda que seus poetas se regozijem na acumulação de toda sorte de objetos raros. Esses objetos são signos, não símbolos: algo intercambiável. Máscaras, sucessão de máscaras que ocultam um rosto tenso e ávido, em perpétua interrogação. Seu amor desmedido pelas formas redondas e plenas, pelas roupagens suntuosas e pelos mundos variegados, delata uma obsessão. Não é o amor à vida, senão o horror ao vazio o que profere todas essas metáforas brilhantes e sonoras. A perpétua busca pelo estranho, a condição de que seja novo – e de novo a condição de que seja único – é avidez de presença, mais do que pelo presente. Se o modernismo é desejo de tempo, seus melhores poetas sabem que é um tempo desencarnado. A atualidade, que à primeira vista parece uma plenitude de tempos, se mostra como uma carência e um desamparo: não a habitam nem o passado nem o futuro. Movimento condenado a negar a si mesmo, já que sua única afirmação é ser movimento, o modernismo é um mito vazio, uma alma desabitada, uma nostalgia da verdadeira presença. Esse é o tema constante e central, o tema secreto nos melhores poetas modernistas, nunca de todo expresso.
Toda revolução, sem excluir as artísticas, postula um futuro que é também um regresso. Na Festa da Deusa Razão, os jacobinos celebram a destruição de um presente injusto e a iminente chegada de uma idade de ouro anterior à história: a sociedade natural de Rousseau. O futuro revolucionário é uma manifestação privilegiada do tempo cíclico: anuncia a volta de um passado arquetípico. Assim, a ação revolucionária por excelência – a ruptura com o passado imediato e a instauração de uma ordem nova – é em si mesma uma restauração: a de um passado imemorial, origem dos tempos. "Revolução" significa regresso ou retorno, tanto no sentido original da palavra – giro dos astros e outros corpos – quanto no sentido de nossa perspectiva da história. Se trata de algo mais profundo que uma mera sobrevivência do pensamento arcaico. Mesmo Engels não resistiu a esta inclinação quase espontânea de nosso pensamento e fez do “comunismo primitivo” de Morgan a primeira etapa da revolução humana. A revolução nos libera da ordem velha para que reapareça, em um nível histórico superior, a ordem primigênia. O futuro que nos propõe o revolucionário é uma promessa: o cumprimento de algo que jaz escondido, semente da vida, na origem dos tempos. A ordem revolucionária é o fim dos tempos de tribulação e o princípio do tempo verdadeiro. Esse princípio é um começo mas sobretudo é uma origem. Mais além: é o fundamento mesmo do tempo. Qualquer que seja o seu nome – razão, justiça, fraternidade, harmonia natural ou lógica da história – é algo que está antes dos tempos históricos ou que de alguma maneira os determina. É o princípio por excelência, aquele que rege ao transcorrer. A força da gravidade do tempo, o que dá sentido a seu movimento e fecundidade à sua agitação, é um ponto fixo: esse passado que é um perpétuo princípio.
Embora o modernismo cante o incessante advento do agora, sua encarnação nesta ou naquela forma gloriosa ou terrível, seu tempo marca o passo, corre e não se move. Precisa de futuro justamente porque foi extirpado de passado. Estética do luxo e da morte, o modernismo é uma estética niilista. Unicamente, se trata de um niilismo mais vivido do que assumido, mais padecido pela sensibilidade do que afrontado pelo espírito. Quantos, com Darío em primeiro, não advertiram que a modernidade não seria senão um girar no vazio, uma máscara com a qual a consciência desesperada simultaneamente se acalma e se exaspera? Essa busca, se é uma busca por algo e não uma mera dissipação, é a nostalgia de uma origem. O homem persegue a si mesmo, ao correr atrás deste ou daquele fantasma: caminha em busca de seu princípio. Basta que o modernismo se contemple, e cessa de existir como tendência. A aventura coletiva chega ao seu fim e começa a exploração individual. É o momento mais alto da paixão modernista: o instante de lucidez que é em si mesmo o de morte.
Busca de uma origem, reconquista de uma herança: nada mais contrário, em aparência, às tendências iniciais do movimento. Em 1896, em pleno furor reformista, Darío proclama: “Os novos poetas americanos de idioma castelhano tiveram de passar rapidamente da independência mental da Espanha... à corrente que hoje une todo o mundo a assinalados grupos, que formam o culto e a vida de uma arte cosmopolita e universal.” À diferença dos espanhóis, Darío não opõe o universal ao cosmopolita; ao contrário, a arte nova é universal porque é cosmopolita. É a arte da cidade grande. A sociedade moderna “edifica a Babel onde todos se compreendem”. (Não sei se todos se compreendem nas novas Babéis, mas a realidade contemporânea, segundo se vê pela história dos movimentos artísticos do século XX, confirma a ideia de Darío sobre o caráter cosmopolita da arte moderna). Sua oposição ao nacionalismo – naqueles anos se dizia “casticismo” – é parte de seu amor pela modernidade e é por isso que sua crítica à tradição se torna também uma crítica à Espanha. A atitude anti-espanhola tem uma origem dupla: de um lado, expressa a vontade de se separar de uma antiga metrópole: “nosso movimento nos ofereceu um posto apartado, independente da literatura castelhana”; de outro, identifica o espanholismo com o tradicionalismo: “a evolução que levou o castelhano a esse renascimento, teria de ser encetada na América, posto que a Espanha está amuralhada de tradição, cercada e eriçada de espanholismo.”
Reforma verbal, o modernismo foi uma sintaxe, uma prosódia, um vocabulário. Seus poetas enriqueceram o idioma com transportes do francês e do inglês; abusaram de arcaísmos e de neologismos; foram os primeiros a empregar a linguagem da conversação. De outra monta, se esquece com frequência que nos poemas modernistas aparece um grande número de americanismos e indigenismos. Seu cosmopolitismo não excluía nem as conquistas da novela naturalista francesa nem as formas linguísticas americanas. Uma parte do léxico modernista foi envelhecida como envelheceram os móveis e objetos da art noveau; o resto entrou na corrente da fala. Não atacaram a sintaxe do castelhano; melhor, a devolveram a naturalidade e evitaram as inversões latinizantes e a ênfase. Foram exagerados, muitas vezes, mas sem empáfia; frequentemente foram cursis (n.t.: kitsch; clichê), mas jamais rígidos. Apesar de seus cisnes e gôndolas, deram ao verso espanhol uma flexibilidade e uma familiaridade que jamais foi vulgar e que haveria de prestar-se admiravelmente à duas tendências da poesia contemporânea: o amor pela imagem insólita e o prosaísmo poético.
A reforma afetou sobretudo a prosódia, pois o modernismo foi uma prodigiosa exploração das possibilidades rítmicas de nossa língua. O interesse dos poetas modernistas pelos problemas métricos foi teórico e prático. Vários escreveram tratados de versificação: Manuel González Prada assinalou que os metros castelhanos, a quaisquer que sejam sua extensão, estão formados por elementos binários, ternários e quaternários, ascendentes ou descendentes. Ricardo Jaimes Freyre indicou que se trata de períodos prosódicos não maiores de nove sílabas. Para ambos poetas, o golpe do acento tônico é o elemento essencial do verso. Os dois se inspiraram na doutrina de Andrés Bello, que já em 1835 havia dito, contra a opinião predominante na Espanha, que cada unidade métrica está composta por cláusulas prosódicas – algo semelhante aos pés de gregos e romanos, ainda que unicamente determinadas pelo acento, não pela quantidade silábica. O modernismo retoma assim a tradição da versificação irregular, antiga como o próprio idioma, de acordo com a demonstração de Pedro Henríquez Ureña. Mas as conclusões teóricas não foram a origem da reforma métrica, senão a consequência natural da atividade poética. Em suma, a novidade do modernismo consistiu na invenção de metros; sua originalidade, na ressurreição do ritmo acentual.
Em matéria de ritmo, como em todo o resto, nosso romantismo ficou a meio caminho. Os poetas modernistas acolheram a tendência romântica a uma maior liberdade rítmica, e a submeteram a um rigor aprendido na França. O exemplo francês não foi o único. As traduções rítmicas de Poe, o verso germânico, a influência de Eugenio de Castro e a lição de Whitman foram os antecedentes dos primeiros poemas semi-livres; e ao final do modernismo, o mexicano José Juan Tablada, precursor da vanguarda, introduziu o haiku, forma que indubitavelmente impressionou a Juan Ramón Jiménez e talvez ao próprio Antonio Machado, como qualquer leitor atento pode comprovar. Não valerá a pena enumerar todos os experimentos e inovações dos modernistas: a ressurreição do endecassílabo anapéstico e provençal; a ruptura da divisão rígida dos hemistíquios do alexandrino, graças ao “encavalgamento” [n.t.: enjambement]; a moda do eneassílabo e o dodecassílabo; as mudanças de acentuação; a invenção de versos largos (até de vinte ou mais sílabas); a mescla de medidas distintas, embora com uma mesma base silábica (ternária ou quaternária); os versos amétricos; a volta às formas tradicionais, como o cosaute [n.t.: canção paralela]... A riqueza de ritmos do modernismo é única na história da língua e sua reforma preparou a adoção do poema em prosa e em verso livre. Mas o que desejo sublinhar é que o cosmopolitismo levou os poetas hispano-americanos a praticar muitos enxertos e cruzamentos; e essas experiências revelaram-lhes a verdadeira tradição da poesia espanhola: a versificação rítmica. O descobrimento não foi casual. Foi algo mais do que uma retórica: foi uma estética e, sobretudo, uma visão de mundo, uma maneira de senti-lo, conhecê-lo e dizê-lo.
Através de um processo aparentemente intrincado, mas natural em seu fundo, a busca de uma linguagem moderna, cosmopolita, leva os poetas hispano-americanos a redescobrir a tradição hispânica. Digo a e não uma tradição espanhola porque essa que descobriram os modernistas, distinta da que defendiam os casticistas, é a tradição central e mais antiga. E precisamente por isso ela se desvelou, ante seus olhos, como esse passado imemorial que é também um perpétuo começo. Ignorada pelos tradicionalistas, essa corrente revela-se universal; é o mesmo princípio que rege a obra dos grandes românticos e simbolistas: o ritmo como fonte da criação poética e como chave do universo. Assim, não se trata unicamente de uma restauração. Ao recobrar a tradição espanhola, o modernismo acrescenta algo novo e que não existia antes nessa tradição. O modernismo é um verdadeiro começo. Como o simbolismo francês, o movimento dos hispano-americanos foi simultaneamente uma reação contra a vagueza dócil dos românticos e nosso verdadeiro romantismo: o universo é um sistema de correspondências, regido pelo ritmo; tudo está cifrado, tudo rima; cada forma natural enuncia algo, a natureza se diz a si mesma em cada uma de suas mudanças; ser poeta não é ser o dono, senão o agente da transmissão do ritmo; a imaginação mais alta é a analogia... Em toda a poesia modernista ressoa um eco do Vers dorés: un mystère d’amour dans le métal repose; tout est sensible.
A nostalgia da unidade cósmica é um sentimento permanente do poeta modernista, mas também o é sua fascinação diante da pluralidade em que se manifesta: “a unidade celeste que pressupões – disse Darío – fará brotar em ti mundos diversos”. Dispersão do ser nas formas, cores, vibrações; fusão dos sentidos em um. As imagens poéticas são as expressões, as encarnações, a um só tempo espirituais e sensíveis, desse ritmo plural e único. Essa maneira de ver, ouvir e sentir ao mundo se explica geralmente em termos psicológicos: sinestesia. Uma exasperação dos nervos, um transtorno da psique. Mas é algo mais: é uma experiência na qual o ser inteiro participa. Poesia de sensações, já se disse; eu diria: poesia que, apesar de seu exasperado individualismo, afirma não a alma do poeta, mas a do mundo. Daí sua indiferença, e por vezes sua aberta hostilidade diante do cristianismo. O mundo não decaiu, nem está distante da mão de Deus. Não é um mundo de perdição: está habitado pelo espírito, é a fonte da inspiração poética e o arquétipo de todo transcorrer: “Ama tu ritmo y ritma tus acciones...”. A poesia de língua espanhola nunca se permitira afirmar algo semelhante, nunca vislumbrara na natureza a morada do espírito, nem no ritmo a sua via de acesso – não à salvação, mas à reconciliação entre o homem e o cosmos. A paixão libertária de nossos românticos, sua rebelião contra “o trono e o altar”, diferenciam-se muito desta visão do universo onde a escatologia do cristianismo é tão-somente um lugar, e a própria figura de Cristo não é mais do que uma das formas de manifestação do Grande Ciclo. É inexplicável que nossa crítica não tenha se detido sobre essas crenças. E essa mesma crítica tem acusado os poetas modernistas, sobretudo na Espanha, de superficialidade! O modernismo se inicia como uma estética do ritmo e desemboca em uma visão rítmica do universo. Revela assim uma das tendências mais antigas da psique humana, recoberta por séculos de cristianismo e racionalismo. Sua revolução foi uma ressurreição. Duplo descobrimento: foi a primeira aparição da sensibilidade americana no âmbito da literatura hispânica; e fez do verso espanhol o ponto de confluência entre o fundo ancestral do homem americano e da poesia europeia. Ao mesmo tempo, revelou um mundo sepultado e recriou os laços entre a tradição espanhola e o espírito moderno. E há algo mais: o movimento dos poetas hispano-americanos está impregnado de uma ideia estranha à tradição castelhana: a poesia é uma revelação distinta à da religião. Ela é a revelação original, o verdadeiro princípio. E não diz outra coisa a poesia moderna, desde o romantismo até o surrealismo. Nessa visão de mundo encontra-se não apenas a originalidade do modernismo, mas sua própria modernidade.
II
Ángel, espectro, medusa...
Rubén Darío
Por sua idade, Rubén Darío foi a ponte entre os iniciadores e a segunda geração modernista; por suas viagens e sua atividade generosa, foi o enlace entre tantos poetas e grupos dispersos em dois continentes; incentivador e capitão de batalha, foi também seu espectador e seu crítico, a sua consciência; e a evolução de sua poesia, desde Azul... (1888) até Poema del Otoño (1910), corresponde com a do movimento: com ele se inicia e com ele acaba. Mas sua obra não termina com o modernismo: o ultrapassa, vai mais além da linguagem dessa escola e, na verdade, de toda escola. É uma criação, algo que pertence mais à história da poesia do que a dos estilos. Darío não é somente o mais amplo e rico dos poetas modernistas: ele é um de nossos grandes poetas modernos. É a origem. Por vezes nos faz pensar em Poe; por vezes, em Whitman. Com o primeiro, pelas partes de sua obra que exibem certo desdém pelo mundo americano, preocupando-se unicamente com a música ultraterrestre; com o segundo, por sua afirmação vitalista, seu panteísmo, e por sentir-se de direito próprio o cantor da América Latina como o outro foi o da saxônica. Mas à diferença de Poe, nosso poeta não se fechou em sua própria aventura espiritual; tampouco teve a fé ingênua de Whitman no progresso e na fraternidade. Mais que aos dois grandes anglo-americanos, poderia assemelhar-se a Victor Hugo: eloquência, abundância e surpresa contínua da rima, essa cascata inesgotável. Como o poeta francês, tem uma inspiração de escultor ciclópico; suas estrofes são blocos de matéria animada, rajada por delicadezas súbitas: a estria do relâmpago sobre a pedra. E o ritmo, o contínuo vaivém que faz do idioma uma imensa massa aquática. Darío é menos desmesurado e profético; também é menos valente: não foi um rebelde e não se propôs a escrever a bíblia da era moderna. Seu gênio era lírico, e professou o mesmo horror à miniatura e ao titanismo. Mais nervoso e angustiado, oscilante entre impulsos contrários, se diria um Hugo atacado pelo mal “decadentista”. E apesar de ter amado e imitado Verlaine sobretudo (e sobre todos), seus melhores poemas se parecem muito pouco com os de seu modelo. Sobravam-lhe saúde e energia; seu sol era mais forte e seu vinho mais generoso. Verlaine era um provinciano de Paris; Darío um centro-americano entre-mundos [trotamundos]. Sua poesia é viril: esqueleto, coração, sexo. Clara e retumbante quando é triste: nada de meias medidas. Nascida em pleno fim de século, sua obra é a de um romântico que foi também um parnasiano e um simbolista. Um parnasiano: nostalgia da escultura; um simbolista: presciência da analogia. Um híbrido, não apenas pela variedade de influências espirituais senão pelas fontes, os sangues que corriam em suas veias: indígena e espanhol com gotas africanas. Um ser raro, ídolo pré-colombiano, um hipogrifo. Na América, saxônica e nossa, são frequentes os enxertos e sobreposições. A América é uma fome intensa de ser, ao ponto de tornar-se um monstro histórico. Mas não são monstruosas a formosura moderna e a mais antiga? Darío sabia melhor do que ninguém: se sentia contemporâneo de Montezuma e de Roosevelt-Nimrod.
Nasceu em Metapa, um povoado da Nicarágua, em 18 de janeiro de 1867. Alguns meses depois de seu nascimento, seu pai abandona a casa familiar; a mãe, mal a conheceu, e deixa-o aos cuidados de um dos tios. Seu verdadeiro nome era Félix Rubén García Sarmiento, mas desde os catorze anos assina-se como Rubén Darío. Nome como um horizonte que se desdobra: Pérsia, Judeia... precocidade: inumeráveis poemas, contos, artigos, todos eles imitações de correntes literárias em voga. Os temas cívicos do romantismo espanhol e hispano-americano: o progresso, a democracia, o anticlericalismo, a independência, a união centro-americana; os líricos: o amor, o mais além, a paisagem, as lendas góticas e árabes. O despertar erótico foi igualmente precoce: amores infantis, fascinação por uma trapezista ianque e, aos quinze anos, a paixão: Rosario Murillo. Pretende casar-se com ela. Dissuadem-no os amigos e familiares que o enviam a El Salvador. Ali, faz amizade com Francisco Gavidia, que lhe dá a conhecer a poesia de Hugo e de alguns parnasianos na língua francesa: “A leitura dos alexandrinos do grande francês – dirá posteriormente – fez surgir em mim a ideia de renovação métrica, que iria ampliar e realizar mais tarde”. Ainda lia com dificuldade o francês, mas alguns de seus poemas desse período já demonstram indícios de uma transição, de acordo com Anderson Imbert: “Em Serenata já está o haxixe que Baudelaire e Gaultier haviam lançado ao mercado... e em Ecce Homo aparece o spleen”, a enfermidade poética do século XIX, tal como a melancolia o foi no século XVII. Em 1884 retorna à Nicarágua. Segundo encontro com Rosalia Murillo. Seu amor havia sido violento e sensual, mas somente agora os enamorados chegam à consumação final. Darío descobre que Rosario não era virgem. Anos depois dirá que “uma particularidade anatômica o fez sofrer”. Não fora a decepção que lhe doeu mais? Ferido, em 1886 empreende uma primeira grande viagem: Chile. Começa seu grande périplo. Não deixará mais de viajar, até sua morte.
Em Santiago e em Valparaíso penetra em mundos mais civilizados e inquietos. Hoje não é fácil termos uma ideia do que foram as oligarquias hispano-americanas de final de século. A paz lhes havia dado riqueza, e a riqueza, luxo. Se não sentiram curiosidade pelo que se passava em suas terras, a tiveram muito viva pelo que sucedia nas grandes metrópoles ultramarinas. E se não criaram uma civilização própria, ajudaram a afinar uma certa sensibilidade. Na biblioteca privada de seu jovem amigo Balmaceda, Darío “sacia sua sede de novas leituras”. Boêmia. Aparece o absinto. E os primeiros escritos de combate: “Eu estou com Gaultier, o primeiro estilista da França.” Admira também a Coppée e sobretudo a Catulle Mendès, seu iniciador e guia. Ao mesmo tempo, continua a fazer imitações destemidas de românticos espanhóis: agora são Bécquer e Campoamor.³ Mas é uma despedida, pois sua estética já é outra: “a palavra deve pintar a cor de um som, o perfume de um astro, aprisionar a alma das coisas.” Em 1888 publica Azul... Com esse livro, composto de contos e poemas, nasce oficialmente o modernismo. Desconcertante sobretudo por sua prosa, mais ousada que seus versos. Em sua segunda edição (1890), Darío restabelece o equilíbrio com a publicação de vários poemas novos: sonetos em verso alexandrino (um alexandrino nunca antes ouvido em espanhol), outros em dodecassílabos e mais outro em um estranho e bonito metro de dezessete sílabas. Não foram apenas os ritmos insólitos, mas o brilho das palavras, a insolência do tom e a sensualidade da frase o que irritou e encantou. O título era quase um manifesto: eco de Mallarmé (Je suis hanté! L’azur, l’azur, l’azur, l’azur) ou cristalização de algo que estava nos ares de sua época? Max Henríquez Ureña assinala que já Gutiérrez Nájera havia mostrado uma fascinação semelhante pelas cores. Como um leque de preferências e caminhos a seguir, em Azul... há cinco “medalhões”, à maneira de Heredia, dedicados a Leconte de Lisle, Mendès, Walt Whitman, J. J. Palma e Salvador Díaz Míron; também há um soneto a Caupolicán, o primeiro de uma série de poemas sobre a “América ignota”. Tudo Darío: os mestres franceses, os contemporâneos hispano-americanos, as civilizações pré-hispânicas, a sombra da águia ianque (“En su país de hierro vive el gran viejo...”). Em seu tempo, Azul... foi um livro profético; hoje, é uma relíquia histórica. Mas há algo mais: um poema que é, para mim, o primeiro que Darío escreveu; quero dizer: o primeiro que foi realmente uma criação, uma obra. Se chama Venus. Cada uma de suas estrofes é sinuosa e fluida como uma água que busca seu caminho pela “profunda extensão” (porque a noite não é alta, mas profunda). Poema negro e branco, espaço palpitante em cujo centro se abre a grande flor sexual, “como incrustado en ébano un dorado y divino jasmin”. O verso final é um dos mais pungentes de nossa poesia: “Venus, desde el abismo, me miraba com triste mirar”. A altura se torna abismo e desde ali nos contempla, em vertigem fixa, a mulher.
Em 1889, Darío volta para a América Central. Novo encontro com Rosario Murillo. Viaja para El Salvador, onde funda um jornal em prol da união centro-americana, causa a que permanecerá fiel por toda a sua vida. Conhece Rafaela Contreras, a Stella de Prosas profanas, e se casa com ela. Vagabundos centro-americanos: Guatemala, Costa Rica. Em 1892, viaja à Espanha por dois meses. No meio dessa viagem, passa por Havana e conhece um dos primeiros modernistas, Julián del Casal, com quem passa uma semana memorável de poesia, amizade e álcool. De volta à Espanha, sua mulher vem a falecer. Ela estava em El Salvador enquanto Daría visitava a Nicarágua. Comoção psíquica, alcoolismo. Mas por pouco tempo: recaída por Rosario Murillo. A paixão se degrada: em uma de suas bebedeiras, os irmãos de sua amante, sob ameaça de morte, o obrigam a se casar. Em 1893 é nomeado Cônsul da Colômbia em Buenos Aires. Darío empreende uma viagem, via Nova York e Paris, com Rosario, mas no Panamá a abandona. Não para sempre: a mulher o perseguirá até a morte, com uma espécie de ódio amoroso. Em Nova York, outro encontro decisivo: José Martí. A escala em Paris foi uma iniciação; ao sair, “jurava pelos deuses do novo Parnaso: havia visto o velho fauno Verlaine, sabia do mistério de Mallarmé e era amigo de Moréas”. Em Buenos Aires encontra o que buscava: vivacidade, cosmopolitismo, luxo. Entre os pampas e o mar, entre a barbárie e a miragem europeia, Buenos Aires era mais uma cidade suspensa no tempo do que assentada no espaço. Desenraizada, mas por isso mesmo com vontade de se inventar; tensionada por criar seu próprio presente e sua futura tradição. Os escritores jovens tinham feito sua estética a nova, e rodearam Darío desde sua chegada. Foi o líder indiscutível. Anos de agitação, polêmicas e dissipação: a sala de redação, o restaurante, o bar. Amizades ferventes: Leopoldo Lugones, Ricardo Jaimes Freyre. Anos de criação: Los raros e Prosas profanas, ambos de 1896. Los raros foi o vade mecum da nova literatura; Prosas profanas foi e é o livro que melhor define o primeiro modernismo: mediatriz, non plus ultra do movimento. Depois de Prosas profanas os caminhos se fecham: há que se recolher as velas, ou então saltar no desconhecido. Rubén Darío escolheu a primeira opção e povoou as terras descobertas; Leopoldo Lugones se arriscou à segunda. Cantos de vida y esperanza (1905) e Lunario sentimental (1909) são as duas obras capitais do segundo modernismo e delas partem, direta ou indiretamente, todas as experiências e tentativas da poesia moderna em língua castelhana.
Prosas profanas: o título, entre o erudito e o sacrílego, irritou ainda mais que o de seu livro anterior. Chamar de prosas – hinos que se cantam nas missas solenes, depois do Evangelho – a uma coleção de versos predominantemente eróticos era, mais do que um arcaísmo, um desafio.⁴ O título, por outra parte, é um exemplo de confusão deliberada entre o vocabulário litúrgico e o do prazer. Essa persistente inclinação de Darío e outros poetas está muito distante de ser um mero capricho; é um dos sinais da oscilação entre fascinação e repulsão que a poesia moderna experimenta diante da religião tradicional. O prólogo escandalizou: parecia escrito em outro idioma e tudo o que dizia soava paradoxal. Amor pela novidade, na condição de que seja inatual; exaltação do eu e desdém pela maioria; supremacia do sonho sobre a vigília e da arte sobre a realidade; horror pelo progresso, pela técnica e pela democracia: “si hay poesía en nuestra América, ella está en las cosas viejas, en Palenque y en Utatlán, en el indio legendario, y en el inca sensual y fino, y en el gran Moctezuma de la silla de oro. Lo demás es tuyo, demócrata Walt Whitman”; ambivalência, amor e escárnio diante do passado espanhol: “abuelo, preciso es decíroslo: mi esposa es de mi tierra; mi querida de París”. Entre todas essas declarações – clarividentes ou impertinentes, ingênuas ou afetadas – ressaltam as de ordem estética. A primeira: a liberdade da arte e sua gratuidade. Em seguida, a negação de todas as escolas, sem excluir sua própria: “mi literatura es mía en mí; quien siga servilmente mis huellas perderá su tesoro personal”; e o ritmo: “como cada palabra tiene un alma, hay en cada verso, además de la armonía verbal, una melodía ideal. La música es sólo de la idea, muchas veces”.
Antes tinha dito que as coisas possuem uma alma; agora, diz que as palavras também a tem. A linguagem é um mundo animado e a música verbal é música de almas (Mallarmé escreveu: da Ideia). Mas se as coisas possuem uma alma, então o universo é sagrado; sua ordem é a mesma da música, e da dança: um concerto feito de acordes, reuniões e separações, de uma coisa com a outra, de uma alma com as demais. A esta ideia, antiga como o próprio homem e desde sempre vista com desconfiança pelo cristianismo, os poetas modernos acrescentam outra: as palavras possuem uma alma e a ordem da linguagem é a mesma do universo: a dança, a harmonia. A linguagem é um duplo mágico do cosmos. Pela poesia, a linguagem recobre seu ser original, volta a ser música. De modo que música ideal já não vem querer dizer música das ideias senão ideias que em sua essência são música. Ideias em sentido platônico, realidades de realidades. Harmonia ideal: alma do mundo, em seu seio todos e tudo somos uma mesma coisa, uma mesma alma. Mas a linguagem, ainda que seja sagrado participar na animação musical do universo, é também discordância. Como o homem, ela é contingência: a um só tempo, a palavra é música e significação. A distância entre o nome e a coisa nomeada, o significado, é a consciência da separação entre o mundo e o homem. A linguagem é a expressão da consciência de si, que é a consciência de sua queda. Pela ferida da significação o ser pleno que é o poema sangra e se torna prosa: descrição e interpretação do mundo. Apesar de que Darío não formulou seu pensamento exatamente nesses termos, toda sua poesia e sua atitude verbal revelam a tensão de seu espírito entre os dois extremos da palavra: a música e o significado. Para o primeiro, o poeta é “de la raza que vida con los números pitagóricos crea”; para o segundo, é “la conciencia de nuestro humano cieno”.
Entre a estética de Prosas profanas e o temperamento de Darío havia uma certa incompatibilidade. Sensual e disperso, não era hermético, mas muito cordial: se sentia e se sabia só, mas sabia que não era um solitário. Foi um homem perdido nos mundos do mundo, não um abstraído diante de si mesmo. O que fornece unidade a Prosas profanas não é a ideia mas a sensação – as sensações. Unidade de acento, algo muito diferente a essa unidade espiritual que faz de Fleurs du mal ou de Leaves of grass mundos autossuficientes, obras que desdobram um tema único em vastas ondas concêntricas. O livro do poeta hispano-americano é um prodigioso repertório de ritmos, formas, cores e sensações. Nem tanto a história de uma consciência, mas as metamorfoses de uma sensibilidade. As inovações métricas e verbais de Prosas profanas deslumbraram e contagiaram a quase todos os poetas desses anos. Mais tarde, por culpa dos imitadores e pela lei fatal do tempo, esse estilo se degradou e sua música pareceu lugar comum. Mas nosso julgamento é distinto do formulado pela geração anterior. Decerto, Prosas profanas por vezes faz lembrar uma loja de antiquários repleta de objetos de art nouveau, com todo tipo de esplendores e raridades de gosto duvidoso (e que hoje parecemos gostar tanto). Mas ao lado dessas bugigangas, como não pressentir o erotismo poderoso, a melancolia viril, o pasmo diante do pulsar do mundo e do próprio coração, a consciência da solidão humana frente à solidão de todas as coisas? Mas nem tudo o que tal livro contém é velharia de colecionista. Ao lado de vários poemas perfeitos e de muitos fragmentos inesquecíveis, em Prosas profanas há uma graça e uma vitalidade que ainda hoje nos arrebata. Segue sendo um livro jovem. Criticam seu artifício, sua afetação: mas repararam no tom ao mesmo tempo esquisito e direto de suas frases, sábia mescla de erudição e conversação? A poesia espanhola mantinha os músculos tesos à força da solenidade e do patético: com Rubén Darío o idioma começa a andar. Seu verso foi o prelúdio do verso contemporâneo, direto e falado. É chegada a hora de ler com outros olhos esse livro admirável e vaidoso. Admirável, porque não há poema que não contenha ao menos uma linha impecável ou perturbadora, vibração fatal da verdadeira poesia: música deste mundo, música de outros mundos, sempre familiar e sempre incomum. Vaidoso, porque seu estilo abeira o maneirismo e a habilidade vence a inspiração. Contorções, piruetas: nada poderia se objetar a esses exercícios se o poeta dançasse nas bordas do abismo: livro sem abismos. E não obstante...
O prazer é o tema central de Prosas profanas. Mas tal prazer, precisamente por ser um jogo, é um rito do qual não se excluem o sacrifício e a penitência. “O dandismo – dizia Baudelaire – converge com o estoicismo”. A religião do prazer é uma religião rigorosa. Eu não reprovaria ao Darío de Prosas profanas pelo seu hedonismo, senão por sua superficialidade. A exigência estética se converte em rigor espiritual. Em troca, nos melhores momentos, brilha a paixão, “luz negra que és más luz que la luz blanca”. A mulher o fascina. Tem todas as formas naturais: colina, tigre, erva, mar, pomba; está vestida de água e de fogo e sua própria nudez é sua vestidura. É um pulsar de imagens: no leito, onde “vuleve gata que se encorva” e ao desatar suas tranças surgem, por debaixo da camisa, “dos cisnes de negros cuellos.” É a encarnação de “outra” religião: “Sonámbula con alma de Eloísa, en ella hay la sagrada frecuencia del altar”. É a presença sensível dessa totalidade única e plural onde se fundem a história e a natureza:
...fatal, cosmopolita,
universal, inmensa, única, sola
y todas; misteriosa y erudita;
ámame mar y nube, espuma y ola.
O erotismo de Darío é passional. O que sente não é talvez o amor a um único ser, mas a atração, no sentido astronômico da palavra, por esse astro incandescente que é o apogeu de todas as presenças, e sua dissolução em luz negra. No esplêndido Coloquio de los centauros a sensualidade se transforma em reflexão apaixonada: “toda forma é um gesto, uma cifra, um enigma”. O poeta ouve “las palabras de la bruma” e as próprias pedras lhe falam. Venus, “reina de las matrices”, impera em este universo de hieroglifos sexuais. Tudo é. Não há bem ou mal: “ni es la torcaz benigna / ni es el cuervo protervo: son formas del enigma”. Ao longo de sua vida, Darío oscilará “entre la catedral y las ruinas paganas”, mas sua verdadeira religião será esta mescla de panteísmo e dúvida, exaltação e tristeza, júbilo e pavor. Poeta do assombro do ser.
O poema final de Prosas profanas, o mais belo do livro em meu gosto, é um resumo de sua estética e uma profecia do rumo futuro de sua poesia. Os temas de Coloquio de los Centauros e outras composições afins adquirem uma densidade extraordinária. A primeira linha do soneto é uma definição de sua poesia: “Yo persigo una forma que no encuentra mi estilo...". Busca uma formosura que está no mais além da própria beleza, algo que as palavras podem evocar mas não conseguem dizer. Todo o romantismo, aspiração ao infinito, está nesse verso; e todo o simbolismo: a beleza ideal, indefinível, que somente pode ser sugerida. Mais ritmo do que corpo, essa forma é feminina. É a natureza, e é a mulher:
Adornan verdes palmas al blanco peristilo;
los astros me han predicho la visión de la Diosa;
y mi alma reposa en la luz como reposa
el ave de la luna sobre el lago tranquilo.
Apenas se faz necessário assinalar que estes soberbos alexandrinos relembram os de Delfica: Reconnais-tu le Temple au péristyle immense... A mesma fé nos astros e a mesma atmosfera de mistério órfico. O soneto de Darío evoca esse “estado de delírio sobrenaturalista” em que dizia Nerval ter composto os seus próprios. Nos tercetos há uma brusca mudança de tom. À certeza da visão sucede a dúvida:
Y no hallo sino la palabra que huye,
la iniciación melódica que de la flauta fluye…
O sentimento de esterilidade e impotência – quase escrevo: indignidade – aparece continuamente em Darío, como em outros grandes poetas dessa época, de Baudelaire a Mallarmé. É a consciência crítica que às vezes se resolve em ironia e outras vezes em silêncio. No verso final o poeta vê o mundo como uma imensa pergunta: não é o homem que interroga ao ser, mas é este que o faz ao homem. Essa linha vale por todo o poema, como esse poema vale por todo o livro: “Y el cullo del gran cisne branco que me interroga”.
Em 1898, Darío realiza o grande salto. Nomeado correspondente de La Nación, viverá na Europa até 1914 e somente retornará à sua terra para morrer. Vida errante, dividida principalmente entre Paris e Mallorca. Trabalhos em periódicos e cargos diplomáticos (Cônsul Geral em Paris, Ministro Plenipotenciário em Madri, Delegado da Nicarágua para vários Conferências Internacionais). Viagens pela Europa e América.⁵ Em 1900 conhece a Francisca Sanchez, espanhola humilde que o acompanhará em suas correrias europeias. Foi a devoção e a piedade amorosa, não a paixão. Esses anos são os anos de sua celebridade. Fama, boa e má: reconhecido como a figura central de nossa poesia, cercado pela admiração dos melhores espanhóis e hispano-americanos (Jiménez, os dois Machados, Valle-Inclán, Nervo), mas também o segue uma cauda de parasitas, companheiros de tristes esbórnias. Anos rápidos, horas longas em que dilui seu vinho, seu sangue, no “cristal de las tinieblas”. Criação e esterilidade, excessos vitais e mentais, a “inútil rebusca de la dicha”, o “falso azul nocturno” das farras e um “dormir a llantos”. Noites em branco, exame de consciência em um quarto de hotel: “por qué el alma tiembla de tal manera?” Mas o vento nas ruas desertas, o rumor da aurora que avança, os ruídos misteriosos e familiares da cidade que desperta, lhe devolvem a velha visão solar. Durante este período publica, à parte de muitos volumes de prosa, seus grandes livros de poesia.⁶ Boa parte dessas composições são um prolongamento da etapa anterior, sem contar que algumas foram escritas na época de Prosas profanas e até antes. Mas a porção mais extensa e valiosa revela um novo Darío, mais grave e lúcido, mais composto e viril.
Ainda que Cantos de vida y esperanza seja seu melhor livro, os que o seguem continuam a mesma veia e contém poemas que não são inferiores aos dessa coleção. Assim, todas essas publicações podem ser vistas como um único livro, ou mais exatamente, como o fluir ininterrupto de várias correntes poéticas simultâneas. Sobretudo, não há ruptura entre Prosas profanas e Cantos de vida y esperanza. Aparecem novos temas, e a expressão é mais sombria e profunda, mas não se ameniza o amor pela palavra brilhante. Tampouco desaparece o gosto pelas inovações rítmicas; ao contrário, são mais ousadas e seguras. Plenitude verbal, o mesmo nos poemas livres nessas admiráveis recriações da retórica barroca que são os sonetos de Trébol; soltura, fluidez, surpresa contínua de uma linguagem em perpétuo movimento; e finalmente: comunicação entre o idioma escrito e o falado, como na Epístola à esposa de Lugones, indubitavelmente antecedente do que se tornará uma das conquistas da poesia contemporânea: a fusão entre a linguagem literária e a fala citadina. Em suma, a originalidade de Cantos de vida y esperanza não implica em uma negação do período anterior: é uma transição natural e que Darío define como “la obra profunda de la hora, la labor del minuto y el prodigio del año”. Prodígios ambíguos, como todos os do tempo.
O primeiro poema de Cantos de vida y esperanza é uma confissão e uma declaração. Defesa (e elegia) de sua juventude: “fue juventud la mía?”; exaltação e crítica de sua estética: “la torre de marfil tentó mi anhelo”; revelação do conflito que o divide e afirmação de seu destino de poeta: “hambre de espacio e sed de cielo”. A dualidade que em Prosas profanas se manifesta em termos estéticos – a forma que persegue e não encontra seu estilo – se mostra agora em sua verdade humana: é uma ruptura da alma. Para expressá-la, Darío se serve de imagens que brotam quase espontaneamente do que poderíamos chamar de sua cosmologia, se se entender por isto não um sistema pensado mas uma visão instintiva do universo. O sol e o mar regem o movimento de sua imaginação; cada vez que busca um símbolo que defina as oscilações de seu ser, aparecem no espaço aéreo ou no aquático. Ao primeiro pertencem os céus, a luz, os astros e, por analogia ou magia simpática, a metade suprassensível do universo: o reino incorruptível e sem nomes das ideias, a música, os números. O segundo é o domínio do sangue, do coração, o mar, o vinho, a mulher, as paixões e também, por contágio mágico, a selva, seus animais e seus monstros. Assim compara seu coração à esponja saturada de sal marinho e imediatamente depois torna a compará-lo a uma fonte no centro de uma selva sagrada. Essa selva é ideal ou celeste: não está fornida de árvores, senão de acordes. É a harmonia. A arte detém uma ponte entre um e outro universo: as folhas e ramas do bosque se transformam em instrumentos musicais. A poesia é reconciliação, imersão na “armonía del gran Todo”. Ao mesmo tempo, é purificação: “el alma que entre allí debe ir desnuda”. Para Darío a poesia é um conhecimento prático ou mágico: uma visão que sobretudo é fusão da dualidade cósmica. Mas não há criação poética sem ascetismo ou combustão espiritual: “de desnuda que está brilla la estrella”. A estética de Darío é uma espécie de orfismo que não exclui a Cristo (mas o tem mais como nostalgia do que como presença), nem a nenhuma das outras experiências vitais e espirituais do homem. Poesia: totalidade e transfiguração.
À mudança de centro de gravidade corresponde uma mudança de perspectiva. Se o tom se torna mais profundo, a paisagem se amplia. Aparece a história, em suas duas formas: como tradição viva e como luta. Prosas profanas continha mais de uma alusão à Espanha; os novos livros a exaltam. Darío nunca foi anti-espanhol, ainda que o irritasse, como à maioria de seus contemporâneos, o espírito provinciano e pretensioso da Espanha de final de século. Mas a renovação poética, recebida primeiro com desconfiança, conquistara os jovens poetas espanhóis; ao mesmo tempo, uma nova geração iniciava nesses anos um exame rigoroso e apaixonado da realidade espanhola. Darío não foi insensível a essas mudanças, as quais, afinal, não tinham se dado sem sua influência. Por último, a experiência europeia revelou-lhe a solidão histórica da América Espanhola. Divididos pelas asperezas da geografia e pelos regimes obtusos que imperaram em nossas terras, não somente estávamos isolados do mundo como separados de nossa própria história. Esta situação apenas pode ser mudada nos dias de hoje; e é sabido que a sensação de solidão no espaço e no tempo, fundo permanente de nosso ser, se torna ainda mais dolorosa no estrangeiro. E para além disso, o contato com outros latino-americanos, perdidos como nós nas grandes urbes modernas, nos faz redescobrir imediatamente uma identidade que atenua as artificiais fronteiras atuais, impostas pela combinação entre poderio estrangeiro e opressão interna. A geração de Darío foi a primeira em ter a consciência desta situação e muitos dos escritores e poetas modernistas fizeram apaixonadas defesas de nossa civilização. Com eles aparece o anti-imperialismo. Darío incomodava-se com política, mas os anos de vida na Europa, em um mundo indiferente ou desdenhoso do nosso, o fizeram voltar os olhos para a Espanha. Vê nela algo mais do que um passado: um princípio ainda vigente e que oferece unidade à nossa dispersão. Sua visão da Espanha não é excludente: abarca as civilizações pré-colombianas e o presente da independência. Sem nostalgia imperial ou colonialista, o poeta falará com o mesmo entusiasmo dos incas, dos conquistadores e dos heróis de nossa independência. Mas se o passado o exalta, lhe angustia a prostração hispânica, a letargia de nossos povos, interrompida tão-somente pelas turbulências de violência cega. Sabe de nossa debilidade e contempla, com temor, o Norte.
Naqueles anos, os Estados Unidos, às vésperas de se tornarem um poder mundial, estendem e consolidam sua dominação na América Latina. Para lográ-lo, usam de todos os meios possíveis: da diplomacia pan-americanista ao “big-stick”, em uma mistura nada infrequente de cinismo e hipocrisia. Quase que para seu pesar (“Yo no soy un poeta para las muchedumbres pero sé que indefectiblemente tengo que ir a ellas”), Darío toma a palavra. Seu anti-imperialismo não se nutre dos temas do radicalismo político. Não vê nos Estados Unidos a encarnação do capitalismo nem concebe o drama hispano-americano como um choque de interesses econômicos e sociais. O decisivo é o conflito entre civilizações distintas e em diferentes períodos históricos: os Estados Unidos são a vanguarda mais jovem e agressiva de uma corrente – nortista, protestante e pragmática – em plena ascensão; nossos povos, herdeiros de duas antigas civilizações, estão em pleno ocaso. Darío não fecha os olhos diante da grandeza anglo-americana – admirava a Poe, Whitman e Emerson – mas se nega a aceitar que essa civilização seja superior à nossa. No poema A Roosevelt, opõe ao otimismo progressista dos ianques (“Crees que en donde pones la bala del porvenir pones: NO”) uma realidade que não é de ordem material: a alma hispano-americana. Não é uma alma morta: “sueña, vibra, ama”. É significativo que nenhum desses verbos designe virtudes políticas: justiça, liberdade, energia. A alma hispano-americana é uma alma abstraída em esferas que pouco ou nada tem a ver com a sociedade humana: sonhar, amar e viver são palavras que designam estados estéticos, passionais e religiosos. Atitude típica da geração modernista: José Enrique Rodó contrapunha ao pragmatismo anglo-americano o idealismo estético latino. Essas definições sumárias hoje nos fazem sorrir. Nos parecem superficiais. E realmente são. Mas há algo nelas, apesar de sua ingenuidade e da presunção retórica com que foram enunciadas, algo de que não suspeitam os ideólogos modernos. O tema tem certa atualidade, donde não me parece inteiramente reprovável arriscar-me a uma digressão.
Nós nos acostumamos a julgar a história como uma luta entre sistemas sociais antagônicos: ao mesmo tempo, às custas de considerar as civilizações como máscaras que encobrem a verdadeira realidade social – ou seja: como “ideologias”, no sentido que Marx dava à palavra – tínhamos por certo atribuir um valor absoluto aos sistemas sociais e econômicos. Um duplo equívoco: de uma parte, fizemos precisamente da “ideologia” o valor histórico por excelência; e por outra, incorremos em um maniqueísmo grosseiro. Hoje já não me parece legítimo tornar a pensar que as civilizações, sem exclusão do modo de produção econômica e técnica, são também expressão de um determinado temperamento, ou, como se dizia antes, do gênio dos povos. Talvez a palavra gênio, por sua riqueza de associações, não seja a mais adequada: direi que se trata de uma disposição coletiva, ou melhor, uma consequência da tradição histórica, ao invés de uma duvidosa fatalidade racial ou étnica. O gênio dos povos seria aquilo que modela as instituições sociais e que, simultaneamente, é modelado por elas; não é uma potência sobrenatural, senão a realidade concreta de seus homens, em uma paisagem determinada, com uma herança semelhante e certo número de possibilidades que tão-somente se realizam pelas graças da ação de um grupo. Enfim, qualquer que seja nossa ideia sobre as civilizações, cada dia me parece mais difícil sustentar que não passam de meros reflexos ou sombras fantásticas: são entidades históricas, realidades tão reais como os utensílios técnicos. São os homens que os manejam. Dessa perspectiva, a querela sino-soviética ou a lenta mas inexorável desagregação da aliança atlântica pedem por outra significação.
Em teoria, a inimizade entre russos e chineses é inexplicável, já que se trata de sistemas sociais semelhantes os quais, também em teoria, ao suprimir o capitalismo, teriam abolido a rivalidade econômica, raiz mesma das contendas políticas. Todavia, apesar do fato de que sua disputa ideológica não possui origens econômicas ou sociais, ela assume a mesma forma das pugnas entre as nações capitalistas.⁷ A seu tempo, os “realistas” empíricos afirmam que a querela sobre a interpretação das escrituras, a “ideologia”, efetivamente não passa de uma máscara – com a ressalva de que ela não mascara as realidades econômicas ou sociais, mas apenas a ambição de grupos rivais em luta por uma hegemonia. Mas então é simples assim? Como não ver nesse conflito o choque entre maneiras de ver e de sentir diferentes, como ignorar que uns são chineses e outros são russos? Os chineses são chineses já a mais de três mil anos e não é simplesmente em um quarto de século de regime revolucionário que milênios de confucionismo e taoísmo serão apagados. E os russos, que são mais jovens, por sua vez são os herdeiros de Bizâncio.
Outro tanto pode ser dito das dificuldades em jogo com a aliança atlântica. A incipiente unidade europeia tornou transparente que as afinidades entre os europeus, da Espanha até a Polônia, são maiores e mais profundas que as razões que unem os Estados Unidos e a Grã-Bretanha com seus aliados continentais. Se trata de algo que possui escassa relação com os regimes sociais imperantes. Desde a guerra dos cem anos os ingleses se opuseram a todas as tentativas de unificação europeia, venham elas da esquerda ou da direita. E nenhum de seus filósofos políticos se interessou realmente por esta ideia. Os Estados Unidos os seguiram com a mesma política de desagregação, primeiro na América Latina e depois no mundo inteiro. Essa política não se deve ao azar, nem é unicamente reflexo de uma maquiavélica vontade de dominação universal. É um estilo histórico, a forma em que se manifesta uma determinada tradição e uma determinada sensibilidade. Os anglo-saxões são um ramo da civilização ocidental que se define antes de tudo por sua vontade de separação: são excêntricos e periféricos. A tradição latina e a germânica são centrípetas; a anglo-saxônica é centrífuga, ou melhor dizendo, pluralista. Ambas as tendências operam desde a dissolução do mundo medieval. Não eram claramente visíveis à época do apogeu das nacionalidades porque a agitação das lutas entre os Estados nacionais as disfarçavam. Hoje, quando eles tendem a se agrupar em unidades mais vastas, vem à superfície a cisão que tanto divide o Ocidente desde o Renascimento: a tendência pluralista e a tradição românico-germânica. E embora a geração modernista tenha ignorado a sociologia e a economia, eles vislumbraram que os conflitos entre civilizações não se reduzem a uma luta por mercados nem à vontade de poder.
Nada mais estranho a Darío que o maniqueísmo. Nunca acreditou que as verdades fossem exclusivas e preferia assumir a contradição a postular algo que negasse os outros. Via no imperialismo ianque o principal obstáculo à união dos povos de fala espanhola e portuguesa. Não se equivocava. Tampouco se equivocava ao admirar os Estados Unidos e em propor-nos suas virtudes como um exemplo. Na realidade, nenhum hispano-americano se atreveu a negar a existência e o valor da civilização anglo-saxônica. E em troca, eles negaram a nossa com frequência. Nosso ressentimento contra os Estados Unidos é superficial: ciúmes, sentimento de inferioridade e, sobretudo, a irritação daquele que é pobre e débil ao ver-se tratado sem equidade. Na América Latina não há má vontade com os anglo-americanos. A verdadeira malevolência é deles e sua raiz, a meu ver, é dupla: o sentimento (inconfessado) de culpa histórica; e a inveja (igualmente inconfessada) diante de formas de vida que a consciência puritana e pragmática percebe como imorais e desejáveis ao mesmo tempo. Por exemplo, nossa concepção do ócio os fascina e os repugna, e de ambas as maneiras os perturba: põe em xeque seu próprio sistema de valores. A insegurança psíquica dos anglo-americanos, quando não desaba em violência, se recobre de afirmações moralistas. Esta atitude os leva a diminuir ou a negar seu interlocutor: eles representam o bem, e os outros, o equívoco, o erro. O diálogo histórico com eles é particularmente difícil porque assume sempre a forma de um julgamento, de um processo ou de um contrato. Nossa atitude perante os anglo-americanos também é ambivalente: nós os imitamos ou os odiamos. Mas não os negamos. Embora tenham nos feito – e nos façam – dano, nos recusamos a vê-los como uma espécie distinta da nossa, como uma encarnação do mal. Por tradição católica e liberal, nos repugna toda visão exclusiva do homem, todo puritanismo. Rubén Darío compartilhava os sentimentos da maioria da América Latina. Ademais, não era um pensador político e seu caráter não era inflexível: nem na vida pública, nem na privada foi um modelo de rigor. Assim, não se estranha que em 1906, ao comparecer como delegado à Conferência Panamericana do Rio de Janeiro, tenha escrito Salutación al Águila. Este poema, que celebra algo mais que uma colaboração entre Américas, poderia fazer-nos duvidar de sua sinceridade. Seríamos injustos: foi celebrado por seu explicável e espontâneo entusiasmo. Que não lhe durou muito. Ele mesmo o confessa em sua Epístola à esposa de Lugones: “En Río de Janeiro... yo panamericanicé / con um vago temor e muy poca fe”. Prova de sua soberana indiferença pela conferência política: ambos os poemas figuram, a poucas páginas de distância, no mesmo livro.
Apesar desse vai-e-vem, Darío não parou de profetizar a ressurreição dos povos hispano-americanos. Embora não o tenha dito claramente em momento algum, acreditava que se o passado havia sido indígena e espanhol, o futuro seria argentino e, talvez, chileno. Nunca lhe ocorreu pensar que a unidade e o renascimento de nossos povos só poderia advir por meio de uma revolução que deitasse abaixo os regimes imperantes de seu tempo e, com raras exceções, de nosso tempo. O Canto a la Argentina (1910) reúne suas ideias prediletas: paz, indústria, cosmopolitismo, latinidade. O evangelho da oligarquia hispano-americana de finais de século, com sua fé no progresso e nas virtudes sobre-humanas da imigração europeia. Não faltou sequer a denúncia do “extravio” revolucionário: “Ananké la bomba puso en la mano de la Locura”. O poema é um hino à Buenos Aires, a Babel porvir: “concentración de vedas, biblias y coranes”. Uma Cosmópolis à maneira de Nova York, mas “com perfume latino”. Os assuntos latino-americanos não foram os únicos que o apaixonaram. Foi um enamorado da França (“Os bárbaros, cara Lutécia!”) e um ardente pacifista. O Canto de esperanza, poema contra a guerra, contém alguns versos milagrosos, como o inicial: “Un gran vuelo de cuervos mancha el azul celeste...” No todo, o poema mantém o mesmo fôlego.
A poesia de inspiração política e histórica de Darío envelheceu tanto quanto a versalhesca e a decadente. Se esta faz pensar em uma tenda de curiosidades, aquela traz à mente os museus de história nacional: glórias oficiais, glórias emboloradas. Se se comparam seus poemas com os de Whitman, percebe-se imediatamente a diferença. O poeta ianque não escreve sobre a história senão para a história e com a história: sua palavra e a história anglo-americana são uma e a mesma coisa. Os poemas do hispano-americano são textos para serem lidos em uma tribuna, diante de um auditório de festa cívica. Mas há momentos, claro, em que o poeta vence o orador. Por exemplo, a primeira parte de A Roosevelt, modelo de insolência e bela desenvoltura; alguns fragmentos de Canto a la Argentina, cujos acertos verbais recordam a Whitman, um Whitman latino e que leu Virgílio; certos relâmpagos de visionário em Canto de esperanza... Mas não é o bastante. Darío tem pouco a dizer e sua pobreza se traveste de ouropel. Emite opiniões, ideias gerais; falta-lhe a perspectiva de Whitman, a visão que se funde com aquilo que vê, a realidade sofrida e gozada. Os poemas de Darío carecem de substância: solo, povo. Substância: o que está abaixo e o que nos sustenta e alimenta. Viu a miséria de nossa gente, olhou o sangue dos matadouros a que chamamos de guerras cívicas? Talvez tenha querido abarcar em demasia: o passado pré-colombiano, a Espanha, o presente abjeto, o futuro radioso. Esqueceu ou não quis ver a outra metade: as oligarquias, a opressão, a paisagem de ossos, cruzes podres e uniformes manchados que é a história latino-americana. Teve entusiasmo; faltou-lhe indignação.
Uma grande onda sexual banha toda a obra de Rubén Darío. Vê ao mundo como um ser dual, feito da contínua oposição e copulação entre o princípio masculino e o feminino. O verbo amar é universal e conjugá-lo é praticar a ciência suprema: não se trata de um saber de conhecimento senão de criação. Mas seria inútil buscar em seu erotismo essa concentração passional que se torna um incandescente ponto fixo. Sua paixão é dispersa e tende a confundir-se com o ir e vir do mar. Em um poema muito conhecido confessa: “Plural ha sido la celeste / historia de mi corazón”. Estranho adjetivo: se chamarmos celeste a esse amor que nos leva a ver na pessoa amada um reflexo da essência divina ou da Ideia, sua paixão dificilmente responderá ao qualificativo. Talvez uma outra acepção da palavra lhe seja mais conveniente: seu coração não se alimenta da visão de um céu imóvel, mas obedece ao movimento dos astros. A tradição de nossa poesia amorosa, provençal ou platônica, concebe a criatura como uma realidade reflexa; o fim último do amor não é o abraço carnal senão a contemplação, prólogo das núpcias entre a alma humana e o espírito. Essa paixão é paixão de unidade. Darío aspira ao contrário: quer dissolver-se de corpo e alma no corpo e na alma do mundo. A história de seu coração é plural em muitos sentidos: pelo número de mulheres amadas e pela fascinação que experimenta diante da pluralidade cósmica. Para o poeta platônico a apreensão da realidade é um trânsito paulatino entre o vário e o uno; o amor consiste na progressiva desaparição da aparente heterogeneidade do universo. Darío sente essa heterogeneidade como a prova ou a manifestação da unidade: cada forma é um mundo completo e simultaneamente é parte da totalidade. A unidade não é uma; é um universo de universos, movido pela gravitação erótica: o instinto, a paixão. O erotismo de Darío é uma visão mágica do mundo.
Amou a várias mulheres. Não foi o que se chama de um amante afortunado (mas o que é que esta expressão quer dizer, afinal?). Suas desventuras, se o foram realmente, não explicam a sucessão de amores nem a substituição de um objeto erótico por outro. Como quase todos os poetas de nossa tradição, disse perseguir um amor único; na verdade, experimenta uma perpétua vertigem diante da totalidade plural. Não é o amor celeste nem a paixão fatal; nem Laura, nem Juana Duval. Suas mulheres são a Mulher e sua Mulher são as mulheres. E mais: a Fêmea. Seus arquétipos femininos são Eva e Cipris. Elas “concentran el misterio del corazón del mundo”. Mistério, coração, mundo: entranha feminina, matriz primordial. Apreensão sensual da realidade: na mulher “se respira el perfume vital de cada cosa”. Esse perfume é o contrário de uma essência: é o olor da própria vida. No mesmo poema, Darío evoca uma imagem que também seduziu a Novalis: o corpo da mulher é o corpo do universo e amar é um ato de canibalismo sagrado. Pão sacramental, hóstia terrestre: comer esse pão é apropriar-se da substância vital. Argila e ambrosia, a carne da mulher, não sua alma, é celeste. Esta palavra não designa a esfera espiritual, mas a energia vital, o sopro divino que anima a criação. Alguns versos adiante, a imagem se faz mais precisa e ousada: o “semen es sagrado”. Para Darío o licor seminal não contém apenas em germe o pensamento: é matéria pensante em si mesmo. Sua cosmologia culmina em um misticismo erótico: faz da mulher a manifestação suprema da realidade plural, e endeusa o sêmen.
Os atores dessa paixão não são pessoas mas forças vitais. O poeta não busca salvar seu eu nem o de sua amada, e sim confundi-los no oceano cósmico. Amar é ampliar o ser. Estas ideias, correntes na alquimia sexual do taoísmo e no tantrismo budista e hindu, nunca haviam aparecido com tal violência na poesia castelhana, toda ela impregnada de cristianismo (as fontes do erotismo espanhol são outras: a poesia provençal, a mística árabe e a tradição platônica do Renascimento italiano). Não é provável que Darío tenha se inspirado diretamente nos textos orientais, embora sem dúvida tenha tido vagas noções dessas filosofias. Em tudo isso há um eco de suas leituras românticas e simbolistas, mas há também algo a mais: essas visões são a expressão fatal e espontânea de sua sensibilidade e de sua intuição. A originalidade de nosso poeta consiste no fato de que, quase sem propô-lo, ressuscita uma antiga maneira de ver e sentir a realidade. Ao redescobrir a solidariedade entre homem e natureza, fundamento das primeiras civilizações e religião primordial dos homens, Darío abre a nossa poesia para um mundo de correspondências e associações. Essa veia de erotismo mágico se prolonga em vários grandes poetas hispano-americanos, como Pablo Neruda.
A imaginação de Darío tende a manifestar-se em direções contrárias e complementares, e daí vem o seu dinamismo. À visão da mulher como extensão e passividade animal e sagrada – argila, ambrosia, terra, pão – sucede outra: é a “Potente a quien las sombras temen, la reina sombria”. Potência ativa, dispensa com indiferença o bem e o mal. Encarna, diria, a profunda, sagrada amoralidade cósmica. É a sereia, o monstro formoso, tanto em sentido físico quanto espiritual. Nela confluem todos os opostos: a terra e a água, o mundo animal e o humano, a sexualidade e a música. É a forma mais completa da metade feminina do cosmos, e em seu canto, salvação e perdição são uma mesma coisa. A mulher é anterior a Cristo: lava todos os pecados, dissipa todos os medos e sua virtude lustral é tal que “al torcer sus cabellos, apaga al infierno”. Seus atributos são duplos: é água, mas também é sangue. Eva e Salomé:
Y la cabeza de Juan el Bautista,
ante quien tiemblan los leones,
cae al hachazo. Sangre llueve.
Pues la rosa sexual
al entrabrirse
conmueve todo lo que existe
con su efluvio carnal
y con su enigma espiritual.
Os arquétipos de seu universo são a matriz e o falo. Estão em todas as formas: “el peludo cangrejo tiene espinas de rosa / y los moluscos reminiscencias de mujeres”. A sedução do segundo verso não provém unicamente do ritmo senão da conjunção de três realidades distintas: moluscos, mulheres e reminiscências. A alusão a vidas anteriores é frequente na poesia de Darío e implica que a cadeia de correspondências é também temporal. A analogia é o tecido vivente pelo qual estão feitos espaço e tempo: é infinita e imortal. O caráter enigmático da realidade consiste em que cada forma seja dupla e tripla e cada ser seja reminiscência ou prefiguração de outro. Os monstros ocupam um lugar privilegiado neste mundo. São os símbolos “vestidos de belleza” da dualidade, o signo vivente do ajuntamento cósmico: “el monstruo expresa un ansia del corazón del Orbe”. E a filosofia de Darío se resolve neste paradoxo: “saber ser lo que sois, enigmas siendo formas”. Se tudo é duplo e tudo está animado, toca ao poeta decifrar as “confidencias del viento, la tierra e el mar”. O poeta é como um ser sem memória, como uma criança perdida em uma cidade estranha: não sabe nem de onde vem nem para vai. Mas esta ignorância esconde um saber informe. Diante do mar catalão: “siento en roca, aceite y vino / yo mi antigüedad”. Criança milenar, o poeta é a consciência do esquecimento em que se sustenta toda a vida humana: sabe que perdemos algo na origem mas não sabe com certeza o que foi que perdemos, ou o que foi que nos perdeu. Percebe “fragmentos de conciencias de ahora y ayer”, contempla o sol negro, chora por estar vivo e se assombra diante da morte.
A crítica universitária costuma preferir ignorar a corrente de ocultismo que atravessa a obra de Darío. Este silêncio prejudica a compreensão de sua poesia. Trata-se de uma corrente central e que constitui não apenas um sistema de pensamento, como um de associações poéticas. É sua ideia do mundo, ou melhor: sua imagem do mundo. Como outros criadores modernos que se serviram dos mesmos símbolos, Darío transformou a “tradição oculta” em visão e palavra. Em um soneto não publicado em livro durante sua vida, ele confessa: “En las constelaciones Pitágoras leia / yo en las constelaciones pitagóricas leo.” Na “confusão de sua alma”, a obsessão de Pitágoras se mescla com a de Orfeu e ambas com o tema do duplo. A dualidade adquire agora a forma de um conflito pessoal: quem e o que é ele? Sabe que é, “desde el tiempo del Paraíso, reo”; sabe que “robó el fuego y robó la armonía”; sabe que “es dos en sí mismo”; e que “siempre quiere ser otro”. Sabe que é um enigma. E a resposta a este enigma é outro:
En la arena me enseña la tortuga de oro
hacia dónde conduce de las musas el coro
y en dónde triunfa augusta la voluntad de Díos.
Em outro soneto, dedicado a Amado Nervo e que permanece também em obra dispersa, a tartaruga de ouro aparece como o emblema do universo. Esta composição me parece ser uma das chaves do melhor e menos conhecido Darío e mereceria uma análise detida. Aqui, demonstro apenas minha perplexidade e fascinação. Os sinais que a tartaruga traça no solo e que se desenham em sua carapaça “nos dicen al Dios que no se nombra”. A forma em que se revela essa divindade inominável é um círculo; esse círculo “encierra la clave del enigma / que a Minotauro mata y a la Medusa asombra”. No soneto que citei primeiro, o ensinamento da tartaruga consiste em mostrar ao poeta a “vontade de Deus”; mas nesse que agora comento essa vontade se identifica com o eterno retorno. A obra divina é a revolução cíclica que põe acima o que estava embaixo e que obriga a cada coisa a transformar-se em seu contrário; imola ao Minotauro e petrifica a Medusa. No espírito do poeta os sinais da tartaruga se convertem em um “ramo de sueños” e em um “buquê de ideias florescidas”. União do mundo vegetal e mental. Esta imagem se resolve em outra, predileta do poeta: esses são os signos da música do mundo. São o emblema do movimento cíclico e o segredo da harmonia: a orquestra “y lo que está suspenso entre el violín y el arco”. Verso pleno de adivinhações e reminiscências: momento em que se detém, sem deter-se, a vontade circular que perpetuamente recomeça.
A analogia não é perfeita. Há uma falha no tecido de chamadas e respostas: o homem. Em Augurios passam sobre a cabeça do poeta a águia, o burro, a pomba, o rouxinol, e cada um desses pássaros é um presságio de força, saber ou sensualidade. Mas subitamente a enumeração muda de rumo, a linguagem simbolista se quebra e irrompe a fala direta: “Pasa un morciélago / pasa una mosca / un moscardón...” Não passa nada e chega a morte. Surpreende o tom amargo e o voluntário, dramático prosaísmo das linhas finais. Dissolução do sonho na sórdida morte cotidiana. O tema de nossa finitude adota por vezes uma forma cristalina. Em Spes a poesia pede a Jesus, “incomparable perdonador de injurias”, a ressurreição: “dime que este espantoso horror de la agonía / que me obsede, es no más de mi culpa nefanda”. Mas Cristo é apenas um de seus deuses, uma das formas desse Deus que não se nomeia. E embora Darío repugnasse o ateísmo racionalista e seu temperamento fosse religioso, e mesmo supersticioso, não poderia dizer-se um poeta cristão, nem sequer no sentido polêmico em que o foi Unamuno. O terror da morte, o horror do ser, o asco de si mesmo, expressões que aparecem uma vez e outra a partir de Cantos de vida y esperanza, são ideias e sentimentos de raiz cristã; mas falta a outra metade, a escatologia do cristianismo. Nascido em um mundo cristão, Darío perdeu a fé e se viu, como a maioria de nós, com a herança da culpa, mas já sem a referência a uma esfera sobrenatural.
O sentimento de uma mancha primordial impregna muitos de seus melhores poemas: ignorância de nossa origem e de nosso fim, medo diante do abismo interior, horror de viver a tatear. A fatiga nervosa, exacerbada por uma vida desordenada e por excessos alcóolicos, o ir e vir de um país a outro, todos contribuíram ao seu desassossego. Ia sem rumo fixo, fustigado pela ânsia; depois caía em letargias que eram “pesadelos brutais” e a morte se lhe aparecia, alternativamente, como poço sem fim ou despertar glorioso. Entre esses poemas, escritos em linguagem sóbria e reticente, oscilante entre o monólogo e a confissão, me comovem sobretudo os três Nocturnos. Não é difícil constatar sua semelhança com certos poemas de Baudelaire, como L’Examen de minuit ou o Le Gouffre.⁸ O primeiro e o último dos Nocturnos termina com o pressentimento da morte. Não a descreve e se limita a nomeá-la com o pronome: Ela. Em troca, a vida se lhe apresenta como um sonho ruim, uma desconjuntada procissão de momentos grotescos ou terríveis, atos irrisórios, projetos não realizados, sentimentos manchados. É a angústia da noite urbana, esse silêncio interrompido pelo “ressoar de um coche distante”, ou pelo zumbido do sangue: oração que se torna blasfêmia, conta sem fim do solitário diante de um futuro fechado como um muro. Mas tudo se resolve em alegria serena se Ela aparece. O erotismo de Darío não se resigna e faz núpcias do morrer.
No Poema del otoño, uma de suas últimas grandes composições, se unem os dois rios que alimentam sua poesia: a meditação diante da morte e o erotismo panteísta. O poema se apresenta como variações sobre o velho e desgastado tema da brevidade da vida, a flor do instante e outros lugares comuns; ao final, o acento se torna mais grave e desafiante: diante da morte o poeta não afirma sua vida própria senão a vida do universo. Em seu crânio, como se fosse um caracol, vibram a terra e o sol; o sal do mar, seiva de sereias e tritões, se mescla ao seu sangue; morrer é viver uma vida mais vasta e poderosa. Acreditava realmente nisso? É verdade que temia a morte, e é verdade também que a amou e desejou. A morte foi sua medusa e sua sereia. Morte dual, como tudo o que tocou, viu e cantou; a unidade é sempre dois. Por isso seu emblema, como viu Juan Ramón Jiménez, é o caracol marinho, silencioso e cheio de rumores, infinito que cabe na palma da mão. Instrumento musical, ressoa com um “incógnito acento”. Talismã que Europa tocou “com suas mãos divinas”; amuleto erótico, convoca “la sirena amada do poeta”; objeto ritual, sua música rouca anuncia a alvorada e o crepúsculo, a hora em que se juntam a luz e a sombra. É o símbolo da correspondência universal. É também o da reminiscência: ao aproximá-lo de seu ouvido, escuta a ressaca de vidas passadas. Caminha sobre a areia, ali desde onde “dejan los cangrejos la ilegible escritura de sus huellas” e seu olhar descobre a concha marinha: em sua alma “otro lucero como el de Venus arde”. O caracol é seu corpo e sua poesia, o vai e vem rítmico, o girar dessas imagens nas que o mundo se revela e se oculta, se diz e se cala. No segundo Nocturno faz a conta do que viveu e do que não viveu, dividido “entre un vasto dolor y cuidados pequeños”, entre memórias e desgraças, iluminações e dizeres violentos:
Todo esto viene em médio del silencio profundo
en que la noche envuelve la terrena ilusión,
y siento como un eco del corazón del mundo
que penetra y conmueve mi propio corazón.
Em 1914, a Europa em guerra, Darío regressa a América. Nos últimos tempos, os apuros materiais se acrescentam aos transtornos do corpo e da alma. Concebeu o projeto de realizar uma série de conferências pelo continente, acompanhado por um compatriota seu que atuava como seu empresário. Em Nova York adoeceu, enfermo. Seu companheiro o abandonou. Ferido de morte, faz a viagem para Guatemala. Ali o recebe a implacável Rosalio Murillo, que o leva para a Nicarágua. Morre em sua casa, no dia 6 de fevereiro de 1916. “El caracol la forma tiene de un corazón”. Foi seu peito vivo e seu crânio morto.
Delhi, 6 de outubro de 1964.
*tradução realizada entre maio e julho de 2023
Notas:
1 - Max Henríquez Ureña, Breve historia del modernismo, México, 1962.
2 - Enrique Anderson Imbert, Historia de la literatura hispanoamericana, México, 1968.
3 - Seus três primeiros livros, escritos antes dos vinte anos, constituem sua contribuição ao gosto imperante: Epístolas y poemas (1885); Abrojos (1887); e Rimas (1887).
4 - Sem dúvida Darío conhecia o poema de Mallarmé: Prose pour des Esseintes, publicado em 1885. É conhecida, além disso, sua admiração por Huysmans: "De setembro de 1893 a fevereiro de 1894 - segundo Max Henríquez Ureña - Darío escreveu uma crônica em um diário de Buenos Aires com o pseudônimo de des Esseintes."
5 - Visitou o nosso continente em 1906 (Conferência Panamericana do Rio de Janeiro); em 1907 (a famosa viagem a Nicarágua, que inspirou vários poemas memoráveis seus); e em 1912 (ciclo de conferências). Sobre a viagem ao México: o presidente interino da Nicarágua, doutor Madriz, o tinha nomeado seu representante nas festas do centenário da Independência mexicana. Enquanto Darío se dirigia até o México, as tropas angloamericanas ocuparam a Nicarágua e obrigaram Madriz a deixar o poder. Para evitar complicações internacionais ao Governo do México, o poeta não prosseguiu em sua viagem até a Capital. Em 1911, publicou um folheto político sobre a intervenção angloamericana em sua pátria: Refutación al Presidente Taft.
6 - Cantos de vida y esperanza, Los cisnes y otros poemas (1905); El canto errante (1907); Poema del otoño y otros poemas (1910); Canto a la Argentina y otros poemas (1914). Deve-se agregar a numerosa obra não recolhida em volumes senão postumamente. A melhor edição da poesia de Darío é a do Fondo de Cultura Económica, México, 1952. Compreende todos os seus livros poéticos e uma antologia da obra dispersa. A edição esteve ao cuidado de Ernesto Mejía Sánchez e o prólogo, excelente, é de Enrique Anderson Imbert.
7 - "Ao mesmo tempo que a oposição de classes no centro das nações - diz o Manifesto Comunista - desaparecerá o antagonismo entre as nações."
8 - Na breve composição sem título que se inicia com o verso "Oh, terremoto mental!", Darío cita expressamente o poeta francês.