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a letra e o sonho

ENGLISH JOURNAL VOL. XXIII JUNE 1934 No.6

PSYCHOANALYSIS AND CREATIVE LITERATURE

Psicanálise e Literatura Criativa, por Llewellyn Jones

tradução por Alexandre Marzullo

Todos nós conhecemos seu nome, se não a obra: Freud. Igualmente, estamos cientes de sua influência direta ou indireta toda vez que temos em mão um texto como o recente Mourning Becomes Electra, de Eugene O’Neill; seja pelo título ou pela motivação da peça, Freud deve ter passado por ali. Mas apesar disso, a verdade é que poucos de nós percebem a intensa complexidade das relações entre arte, psicanálise e crítica. Este presente artigo pode apenas acenar a essas relações complexas, e oferecer um punhado de exemplos de como a nova psicologia influencia a arte atual, bem como a relação entre crítica e leitura no que diz respeito ao artista.

À primeira vista, a relação da psicanálise com a arte parece ser de caráter hostil. Freud elimina os últimos vestígios daquele romantismo dócil que tornou o artista um ser à parte – feito de um barro mais refinado do que o que moldou a humanidade ordinária. Freud equaciona o artista ao neurótico. Isso pode soar como uma nova versão daquela teoria de vida breve, de Max Nordau, que qualificava o artista como um “degenerado” – mas no entanto, não se trata disso. Para Freud, a palavra “neurótico” não possui essa conotação. Todos nós somos neuróticos na medida em que possuímos conflitos internos e desejos reprimidos, com os quais lidamos na altura de nossos melhores esforços: seja através da sublimação, seja por um acting out, seja pela fuga do mundo. Por isso, ao invés de dizer que o artista é um neurótico, Freud provavelmente teria preferido dizer que o neurótico é um artista individualmente circunscrito – e mal-sucedido nisso. O artista sublima seus conflitos em obras de arte, que por sua vez nos dizem respeito pelo fato de que nossos conflitos também se sublimam nelas. Mas ao neurótico faltam a técnica artística e o sentido social do artista, de modo que ele elabora uma "obra de arte" particular que só poderá ser apreciada por ele mesmo. Devo acrescentar en passant que Freud não trabalha mais somente com a “libido” e seus desejos. Ele também analisou o poder do que chamamos de “consciência” e nos mostrou que ela é tão “real” e poderosa quanto nossos impulsos inconscientes.

Por outro lado, não é absolutamente necessário ser um “freudiano” para perceber o inconsciente. Mesmo sem Freud nós ainda chegaríamos a ter os “romances de fluxo-de-consciência” [stream-of-consciousness novels] – penetrando no mínimo um pouco mais abaixo da consciência – dos quais Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust (com cerca de dez volumes na tradução para a língua inglesa), Pilgrimage, de Dorothy Richardson, e Ulysses, de James Joyce, são os exemplos paradigmáticos. E ao menos dois deles chegaríamos a ter, pois Proust, segundo seus críticos franceses, não tinha lido Freud quando começou a escrever sua obra monumental. O que Proust sabia sobre o inconsciente, ele aprendeu de seu compatriota distante, Henri Bergson. Dorothy Richardson, por sua vez, conseguiu escrever as aventuras de sua heroína Miriam, pela perspectiva da própria vida interior de Miriam, porque ela mesma possui a rara faculdade de uma “memória fotográfica” [“total recall”]. O sr. H. G. Wells certa vez contou à escritora que uma das cenas da vida de Miriam é um chá da tarde no qual o sr. e  a sra. Wells estiveram presente – e se de fato me recordo bem, a sra. Wells era a anfitriã. A estória veio à tona alguns anos depois, e a sra. Wells ressaltou que a srta. Richardson lembrou-se de cada convidado nos mínimos detalhes, inclusive em vestuário, mas um de seus personagens exibia um vestido púrpura, enquanto originalmente tinha-se usado um vestido verde. Esse fora o único equívoco! Ulysses, por outro lado, foi escrito após Joyce ter estudado a psicologia freudiana. E em um grau maior do que o atingido por Proust ou pela srta. Richardson, Joyce abandonou qualquer censura de seu material interno para nos oferecer toda sorte de associações e simbolismos referentes à infância.

Realmente, com Joyce nós passamos do mero romance de fluxo-de-consciência para o romance especificamente freudiano. A diferença está entre a exibição de um fluxo em livre curso e a exibição de um fluxo que permanece como que represado. Se Freud não descobriu o inconsciente, ele descobriu seu represamento: o inconsciente é represado [dammed] a cada ponto onde seu livre curso poderia interferir com nossos progressos na vida – satisfazendo as “demandas do ego” – e consciência. Mas as demandas da libido são inexoráveis. Reprimidas de sua expressão plena, elas buscarão exprimir-se por fantasias. Há uma via expressiva direta entre o "sonhar acordado" ocioso e as insanidades histéricas. É uma via individualista, e satisfatória apenas para aquele que a trafega. Mas há uma alternativa: uma outra via expressa de produção de fantasias, e essa é a arte. Ela difere do sonhar acordado pelo fato de ter um caráter social: sua fantasia é tão comum, poderíamos dizer, que ela se insere no mundo fantástico de todos nós. Ao mesmo tempo, ela é controlada pela mente racional: o artista verdadeiro jamais possui uma personalidade dividida. De fato, sua fantasia pode mesmo sequer intervir no conteúdo de seu trabalho. O elemento fantasioso na pintura, por exemplo, pode ser uma sublimação de uma forma infantil de sexualidade expressada, em sua infância, pelo amor por borras e manchas [daubing], ou pelo brincar com tortas de lama [mud pies]. Por outro lado, o que é conhecido como “sexualidade oral infantil”, quando sublimada, fornece-nos o artista que joga com as palavras: a zona erógena oral – primeiramente simulada no seio maternal –, que ainda está ativa mas sob uma atividade sublimatória. O conteúdo desses trabalhos, nesses dois exemplos, pode ser rigorosamente realístico e racional.

Portanto, o leitor pode facilmente suspeitar que esses críticos, que tão afobadamente julgaram trabalhos de arte como se fossem sonhos a serem interpretados pelo simbolismo freudiano, estavam a debater algo como o sexo dos anjos. Ora, se em um poeta lírico, imagem após imagem, surge algo que definitivamente possui um caráter simbólico, poderemos suspeitar disso ou daquilo. Mas temos de ter em mente que uma imagem em um poema não é necessariamente uma expressão simbólica em sentido freudiano. Quando Yeats, por exemplo, em um número de poemas utiliza a figura da rosa,

Red rose, proud rose, sad rose of all my days!

Rose, of all roses, Rose of all the world!

Rosa vermelha, rosa altiva, triste rosa de todos os meus dias!

Rosa, de todas as rosas, Rosa do mundo inteiro!

ele não nos habilita a assumir que está se referindo ao índice da Interpretação dos Sonhos, de Freud, de modo a encontrarmos, ali, algum “desejo suprimido” em particular do qual a rosa será um símbolo. Em primeiro lugar, porque não é absolutamente assim que funciona; e em segundo lugar, porque a rosa, para Yeats, é um símbolo em um outro sentido da palavra – é a rosa da ordem Rosacruz, o que significa que não se trata de um símbolo freudiano em nenhum grau, e sim de uma metáfora que Yeats utilizou por seu significado intelectual.

De outra monta, a preocupação de Edgar Allan Poe com os símbolos da morte, com mulheres pálidas e moribundas (e mesmo mortas), não é uma exploração literária de um dado conjunto metafórico, mas uma expressão de si mesmo. Aqui, podemos estudar sua poesia em conjunto com sua vida. As atrações de Poe eram todas relativas a mulheres marcadas pela morte. Sua mãe morreu um mês antes de seu terceiro ano de vida; sua madrasta, sra. Allan, a quem amava, morreu em sua juventude. Jane Stith Stanard, para quem ele escreveu,

Helen, thy beauty is to me…

Helen, tua Beleza é para mim...

morreu logo depois de tê-la conhecido. Ele casou-se então com Virginia Clemm, que já exibia um aspecto terminal em seu rosto. O próprio Poe, antes de seus vinte anos, estava consciente dessa tendência, e escreveu:

I could not love except where Death

Was mingling his with Beauty’s breath,

Or Hymen, Time, and Destiny,

Were stalking between her and me.

Eu não poderia amar senão onde a morte

Misturava-se à Beleza em sua sorte,

Ou Hímen, Tempo e Destino

Entre eu e ela se espreitava fino.

Mas anos depois ele renegou esses versos de sua obra publicada: provavelmente a autorrevelação o assustou, ou não poderia mais ser suportável para ele. As críticas sobre sua obra se abrem desde as idiotices e difamações de Griswold, em uma primeira hora, para a compreensão parcial de Poe em nosso próprio país e uma bem mais favorável em outras fronteiras. Aliás, o que sem dúvidas será o livro definitivo para a nossa geração, sobre Poe, acabou de ser publicado na França. Edgar Poe: Étude Pyschoanalytique (2 vols.), pela Princesa Marie Bonaparte, é um estudo documentado e profundo da vida e da obra de Poe. É um excelente exemplo do método psicanalítico na crítica literária. Nenhuma tentativa foi feita para solucionar o problema último da genialidade. Mas sua tese exemplifica e determina que cada motivo na obra de Poe – tal como em qualquer outro artista – cada imagem utilizada, será, se tivermos evidência biográfica e psicológica suficiente, explicável e inevitável. Contudo, na falta de uma tal evidência em um ponto crucial da obra, a Princesa Marie nos pede para que realizemos uma suposição: que o então infante Edgar (com dois anos e onze meses de vida) viu sua mãe por uma última vez enquanto ela morria, deitada na cama, em seu último suspiro. Ora, que a criança seria, antes de ser custodiada pela sra. Allan, trazida para ver a mãe falecida, é uma suposição natural a se fazer. E se a fizermos, as relações subsequentes de Poe com as mulheres de sua vida e o tratamento do amor em seu trabalho se tornam mais do que meramente inteligíveis: elas traçam um padrão rigidamente lógico. Seus amores foram simplesmente reencenações de seu primeiro amor: a mãe que morrera. Como nos diz a Princesa Marie Bonaparte, de modo apologético, pode ser custoso e entediante para o leitor considerar que o ciclo de narrativas que incluem Berenice, Morella, Ligeia, The Fall of the House of Usher, Leonora, The Oval Portrait, The Assignation e Metzengerstein:

Avant de poursuivre cette macabre revue des heroines poesques, il me faut m'excuser de la monotonie du theme. C'est toujours et encore le meme tableau manifeste: une femme ideale qui deperit, qui meurt, mais qui n'est pourtant pas vraiment morte, et reste vivante d'un élat surnaturel, putride et éthéré à la fois. C'est encore et toujours le meme theme latente: I'agonie et la morte de la jeune actrice Elizabeth Arnold, reproduites par delt les annees par l'agonie et la morte proche de la petite Virginia.

Antes de prosseguir com esta revisão macabra de suas heroínas poéticas, preciso desculpar-me pela monotonia do tema. É a mesma imagem, repetidas vezes expressa: uma mulher ideal que definha, que morre, mas que ainda assim permanece viva em um brilho sobrenatural, pútrido e por vezes etéreo. É sempre o mesmo tema latente: a agonia e a morte da jovem atriz Elizabeth Arnold, reproduzida ano após ano, a agonia e a morte inevitáveis da pequena Virginia.

Na atmosfera fantástica de certas estórias de Poe, um crítico vê mais um ciclo de reminiscências maternas, e em outros contos a expressão inconsciente de revolta contra o pai, que para Poe não era seu pai biológico, mas o sr. John Allan. Mas o leitor pode objetar que, sendo Poe confessadamente anormal, um método de interpretação aparentemente aplicável em sua poesia não poderia ser necessariamente aplicável à poesia de outros artistas. Examinemos, portanto, os trabalhos de um poeta americano contemporâneo a nós, ainda vivo, Robinson Jeffers. Depois de um momento inicial em que sua obra atraiu pouca atenção, seu primeiro – e longo – poema de importância foi “Tamar”, publicado em 1924, seguido por “Roan Stallion”, “The Women at Point Sur”, “Cawdor”, “Dear Judas”, etc. O local onde a maioria de seus poemas longos se passa é a California rural, mas podemos presumir com maior ou menor certeza que as ações e pensamentos de seus personagens não são as típicas dos habitantes daquele estado. Um dos temas mais recorrentes do sr. Jeffers é o incesto, embora em "Tamar" (e em um ou dois de seus outros poemas) existam tantas outras aberrações sexuais em jogo que mesmo o mais moralista dos leitores não se chocaria completamente pelos incestos ali. O próprio poeta explicou-se para o autor de um “perfil” sobre ele: Robinson Jeffers: A Portrait, por Louis Adamic (University of Washington Chapbooks), que em sua poesia o incesto é utilizado conscientemente como um símbolo (ou seja, um símbolo não em sentido freudiano, mas com o significado de uma metáfora ou alegoria). Para citá-lo: “...o incesto é simbolizado como uma introversão racial – um fato dos homens, exclusivamente – fundando seus valores, desejos, suas imagens do universo, e por fim toda a sua humanidade.” Jeffers, como se sabe, vive em isolamento, sem contato com outras pessoas, e revolta-se com a ideia de um contato humano próximo ou mesmo de um “humanitarismo”. Mas, infelizmente, nós somos todos “membros um do outro”, e os humanistas religiosos ficariam chocados ao descobrir que, ao menos na mente desse poeta, sua meta possui um caráter unicamente simbolizável enquanto “crime primal” – o mesmo que, de acordo com Freud, é o crime do qual toda humanidade se culpabiliza em sua mente inconsciente.

Mas é claro, sabemos que as fontes da arte são mais profundas do que a mente consciente admite, e qualquer psicólogo diria que a explicação do próprio Jeffers acerca de suas articulações poéticas não passa de uma racionalização. De fato, para Jeffers suas articulações para a ideia de introversão podem até ser razoáveis. Mas dificilmente se poderá dizer o mesmo a um observador neutro. A possibilidade de tal ideia deve, forçosamente, ser ditada a ele por motivos inconscientes. Para compreendermos sua poesia profundamente, nós deveríamos conhecer tais motivos, enquanto que para apreciarmos sua poesia em um sentido mais ligeiro, isso não seria necessário. Hamlet, de Shakespeare, por exemplo, vem sendo apreciado por milhares que não entenderam a motivação de Hamlet. Por mais de dois séculos, críticos impacientes têm se exasperado: “Se a Hamlet foi dito que matasse seu tio, e ele pretendia fazê-lo, por que hesitou tanto?” Mas assistindo à peça, nós esquecemos dessa pergunta: nós somos tocados por ela, e aceitamos seu enredo. A explicação psicanalítica da hesitação e de nossa aceitação da mesma é que Hamlet, inconscientemente apaixonado pela própria mãe, odeia sua infidelidade ao pai e seu segundo casamento – isto é, o afastamento da maternidade de sua mãe em relação a ele – mais até do que ele odeia o crime de seu tio. É este ódio que ele está expressando, quando sem nenhuma razão conscientemente aparente, ele despreza Ophelia. Mas ele não pode odiar seu tio com a mesma convicção, pois partilha de uma confraria de culpa com ele. Seu tio apenas fez de modo bem-sucedido e explícito o que ele desejava fazer inconscientemente. Toda essa cadeia de motivações foi elaborada por Ernest Jones em um ensaio, “A Psycho-Analytic Study of ‘Hamlet’” publicado em seu Essays in Applied Psycho-Analysis. “Mas o que Shakespeare sabia sobre Freud?” é provavelmente a objeção imediata, a qual Dr. Jones responde assertivamente que, claro, Shakespeare nada sabia sobre Freud. No entanto, o Dr. Jones sublinha que Hamlet (como a maior parte da crítica acede) é um autorretrato. E que ao escrever a peça, Shakespeare expressara tanto elaborações inconscientes de sua própria mente como experiências conscientes, concretas. Frank Harris sugeriu, por exemplo, que Shakespeare em sua peça identificara a mãe de Hamlet com sua própria Mary Fitton, adúltera. E assim, nós, quando vemos a peça, nos sentimos tocados por ela porque, também inconscientemente, sentimos as mesmas tensões e impulsos em nossos relacionamentos emocionais. A peça “entra em nossa pele” e o faz, em parte, sem exigir a mediação de um intelecto crítico.

Novamente eu saltarei de um autor morto para um contemporâneo. Shakespeare foi um gênio, e escreveu diretamente de seu coração – ou de seu inconsciente. Mas quando nosso dramaturgo conhece algo de Freud, para começo de conversa, a questão ganha outro volume. Eugene O’Neill, em Strange Interlude e em Mourning Becomes Electra, utilizou um bocado de material freudiano, mas com uma diferença: ele parece tê-lo feito consciente e calculadamente. Temos a sensação de que sua obra foi fabricada, mais do que elaborada – especialmente em Mourning Becomes Electra. Nesta, O’Neill paralela a tragédia grega em termos modernos. Mas de um modo aparentemente tão ansioso em fazer-nos entender a transposição que ele exagera por todo o enredo. Como Ludwig Lewisohn sublinha em seu Expression in America – uma história da literatura americana escrita sob termos psicanalíticos – o desejo incestuoso é um desejo inconsciente. E em 1865, as pessoas não sabiam sequer que possuíam tal tipo de coisa. Portanto, quando (na peça) a sra. Mannon diz a sua filha, “Você tentou se tornar a esposa de seu pai e a mãe de Orin”, sua fala está além dela mesma por algumas décadas. O espectador da peça terá notado, também, como nos últimos atos a filha se identifica com a mãe por utilizar a mesma cor e corte de roupas: é um pouco óbvio demais, grosseiramente delineando o mecanismo de “identificação” que se preocupa em expressar. Mas talvez o palco seja um medium que desautorize grandes sutilezas, e também não devemos esquecer que O’Neill estava escrevendo uma peça na qual ele tinha de empregar uma motivação freudiana visível o suficiente para pessoas que nunca haviam lido Freud. Supõe-se que na medida em que o conhecimento popular dos mecanismos freudianos cresce, dramaturgos e romancistas poderão transitar com mais propriedade em seus trabalhos a partir desse campo.

Pois é de fato um campo novo que se abre. No passado, a realidade do sonho e da fantasia foram, para o romancista, a dimensão do fantástico. Lewis Carroll teria gargalhado diante de qualquer tentativa para explicar Alice in Wonderland em termos racionais. E se, para além de motivos puramente artísticos, houve algum objetivo posterior em explorar tanto o sonho ou a fantasia como temas literários, foi por sua capacidade da alegoria, ou então por razões didáticas. Isso é notavelmente verdadeiro nos livros de James Branch Cabell, desde Jurgen até o recentemente publicado Smirt. O sr. Cabell considera que seus livros são romances, mas não é exatamente isso. Tratam-se de alegorias, sequer disfarçadas, de um pessimista e de uma vítima do tédio. Todos os heróis românticos do sr. Cabell acreditam que o amor romântico foi arruinado pelo casamento, e que o casamento os domestica, incapacitando-os para o amor romântico. E assim, o sr. Cabell, em seus ensaios que explicitam suas intenções ficcionais (como em Straws and Prayer-books), diz a seus leitores que a vida é um negócio tedioso, que a bebida e o amor ilícito como distrações possuem consequências desconfortáveis, e que eles devem restringir seus casos de amor para com mulheres preferencialmente mortas, como Helena de Troia, cuja vida só se permite nas páginas dos grandes escritores beletristas. É claro que no meio disso as esposas têm o seu lugar: há sempre um botão para ser costurado, afinal.

Desde Freud, todavia, o sonho e a fantasia em geral tomaram uma outra função nas mãos do escritor de obras de ficção. Uma vez que são partes de nós e tão “determinados” e sintomáticos quanto nossos próprios atos, eles podem ser utilizados realisticamente. O melhor exemplo deste uso dos sonhos, até onde tenho conhecimento, está em Czardas, de Jeno Heltai (tradução para o inglês publicada pela Houghton Mifflin). Heltai, é significativo dizê-lo, vive em Budapeste, lar do falecido Sandor Ferenczi, pioneiro da psicanálise cuja importância é somente menos intensa do que a do próprio Freud. Heltai, o mais notável romancista da Hungria, certamente conheceu seu compatriota. O título de seu trabalho é o nome de uma dança magyar, e refere-se ao modo como imagens fantásticas surgem através dos sonhos de um aviador de Budapeste, que perdeu um braço na guerra e é dispensado, voltando para o lar após o serviço militar. Com os nervos feridos, tal como seu braço, ele sonha com um homem cego, que bate sua bengala no solo enquanto o persegue com intenções malévolas. Mas um outro sonho o conforta: uma estátua de porcelana de uma linda mulher, que lhe diz palavras de acalanto. Já em casa em Budapeste, seus velhos amigos desapareceram ou o abandonaram, e ele busca encontrar as realidades que se ocultam por trás desses sonhos. Isto, é claro, não pode ser feito sem ajuda analítica, mas o autor faz com que a marcha dos eventos tome o lugar do analista, e nosso herói consegue então reconstruir seu passado. Falando por ele, aliás, o autor profere uma expressão muito sugestiva do que poderia ser chamada de uma “filosofia da vivência” [philosophy of living], implícita na nova psicologia. É um aviso contra a permissão de deixarmos os eventos da vida dividirem nossa personalidade; um pedido por integração e pela verdade a tudo o que está dentro de nós:

O mortals, how can you live like that? With the indifference of strangers you pass by what was yesterday, and you have forgotten what happened to you ten, twenty, thirty years ago. You do not try to assemble the fragments of your life so as to keep it whole and present all the time. You do not pick up the broken threads of the past to link minutes to hours, hours to years, and years to youth. How can you exist without desiring to hold in yourselves forever the thoughts that have passed through your mind? Can one really live without seeing himself at one and the same time child and old man, happy and unhappy, good and bad, living and dead? Is one really alive if he limits his life to a single time, and lives for that time alone, instead of living everywhere a life eternal and without end…?

Mortais! Como podem viver assim? Com a indiferença de estranhos vocês atravessam pelo que foi o ontem, já esquecidos do que lhes aconteceu há dez, vinte, trinta anos atrás. Vocês não tentam rearranjar os fragmentos de sua vida para mantê-los inteiriços e presentes a todo momento. Vocês não resgatam os fios soltos do passado para coligar minutos a horas e horas a anos e anos a juventude. Como podem existir sem desejar segurar seus próprios pensamentos que perpassam sua própria mente? Poderiam realmente viver sem verem a si mesmos ao mesmo tempo como criança e homem velho, felizes e infelizes, bons e maus, vivos e mortos? Será que alguém realmente vive se ele limita a sua vida a um tempo único, e vive por aquele tempo apenas, ao invés de viver em toda parte a eterna vida e sem fim...?

As pessoas frequentemente se perguntam se o realismo completou seu ciclo e se iremos finalmente voltar ao romance puro e simples. Bem, o leitor mais refinado sabe que cada ação na vida possui uma base no inconsciente, e que uma relação direta com a consciência não será jamais possível no realismo objetivo (digo, "em intenção", pois nenhuma ficção jamais foi objetiva) de Benett e Dreiser, por exemplo. De igual maneira, toda escola do romance de capa e escada será insatisfatória para esse leitor mais exigente. O novelista do futuro, imagino, terá de conhecer Freud, ou então deverá escrever autobiograficamente, como muitos romancistas iniciantes começam. É claro que, se ele for um gênio, ele verá, como Dostoievsky viu, muito do que se alcança pela análise freudiana. Mas um escritor meramente realista deverá observar bem onde pisa. Ele não poderá, como Willa Cather fez em The Lost Lady, fazer um garoto idiota furar os olhos de um pássaro para demonstrar a sua crueldade inata. Em uma conversa que teve comigo alguns anos atrás, o falecido Harvey O’ Higgins, que escreveu contos e um romance a partir de achados freudianos, qualificou essa passagem como “aberrante”. Uma pessoa ordinariamente cruel não performaria esse tipo de coisa; apenas uma pessoa com um tipo de complexo específico, em uma direção mental especificamente pronunciada, poderia praticá-lo. Não era esse o caso.

A atual exploração da psicanálise para fins de material de enredo não irá, todavia, nos fornecer a ficção significante do futuro. Esse tipo de coisa não pode competir, a nível de importância, com os casos reais, e atrairá somente curiosos. O valor que a nova disciplina oferece para a nova literatura será no maior insight que fornece ao novelista, tanto em suas motivações quanto no auxílio que subsidia ao leitor em distinguir entre a ficção séria e “verdadeira” e a ficção que é tão-somente uma concessão à realização de sonhos autocentrada. E enquanto a nova disciplina pode desencorajar o autor de menor altura, que adentra em seu campo sobrevalorizando sua própria situação psíquica, ela não irá, em nosso tempo, penetrar tão profundamente na alma a ponto de analisar e esvaziar os dons criativos de nossos gênios. Disso, podemos nos considerar reassegurados.

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