a letra e o sonho
METAPHORS ON VISION:
Stan Brakhage, em entrevista a P. Adams Sitney, 1963
(introdução do livro Metaphors on Vision, de Stan Brakhage).
traduzido por Alexandre Marzullo
Aqui está METÁFORAS DA VISÃO: uma coletânea de escritos sobre filmes e, em particular, sobre a ideia de filme tal qual Stan Brakhage a concebe e realiza. Ainda mais significativamente, trata-se de um testemunho sobre os fundamentos de uma arte mitopoética [mythopoeic art]. A mitopoiese [mythopoeia] consiste na rara e muito desejada renovação de um velho mito ou na criação de um mito novo. Quando Brakhage começou a escrever METÁFORAS, ele já tinha feito cerca de quinze filmes. A maioria deles (de INTERIM, de 1952, a FLESH OF THE MORNING, de 1956), em um gênero ‘psicodramático’: “metade-neorrealista-metade-visão-onírica”. Desde então, tornaram-se obras clássicas para os jovens cineastas que seguiram em tal tradição, mas ocorre que em 1958 (ano de seu casamento), Stan Brakhage começou a migrar para a elaboração mitopoética. Ele estava sentindo as limitações da forma dramática, percebendo que um filme poderia fazer mais do que revelar a personalidade de um “ator/tema.” Simultaneamente, estava produzindo ANTICIPATION OF THE NIGHT (1958), o primeiro filme norte-americano tematizado e estruturado pela natureza da experiência da visão; como alguém experimenta uma visão, como se lembra do que viu, como essa visão afeta uma visão posterior, e o que tudo isso pode gerar naquele que vê. Foi durante a realização desse filme que Brakhage se deparou com uma descoberta simples mas desconcertante, e que se tornou central em sua estética: se a visão é o valor mais importante em um filme, então a câmera (e seu operador) devem permitir as visões ao invés de forçá-las (pelo script) sobre as coisas. A profundidade de sua convicção em relação a este princípio, e a rejeição de ANTICIPATION OF THE NIGHT por muitos artistas de vanguarda e críticos anteriormente receptivos à sua obra inspiraram Brakhage a elaborar uma espécie de Apologia através da escrita de METÁFORAS DA VISÃO. Ao longo dos três ou quatro anos em que os cinco primeiros capítulos estavam sendo redigidos, a escrita de Brakhage desenvolveu-se de uma polemização inicial para um método de esclarecimento de suas descobertas durante a realização de seus filmes, liberando-o, “através da escrita” [thru writing], para a produção de novas obras. Cerca de quinze novos filmes foram feitos durante a composição de METÁFORAS DA VISÃO; dentre eles, PRELUDE (1961) e PART I (1962) de seu magnum opus, DOG STAR MAN (1961 – 1964). No período entre a conclusão dos primeiros cinco capítulos e a escrita do capítulo Margem Estrangeira [Margin Alien; por traduzir (n.t.)], Brakhage permitiu a si e ao seu trabalho uma abertura para a incorporação das tradições literárias referidas naquele texto. E ao fazê-lo, sem permitir todavia que tais alusões interferissem com a visão, ele tornou DOG STAR MAN um filme verdadeiramente mitopoético. Na mesma época, Brakhage passou a aceitar e contentar-se com uma posição mais humilde para o artista, tal qual Platão a concebe em seu ION; a saber, como um elo de uma corrente, a conectar a Musa com seu público final. No processo, Brakhage tornou-se um mentor para diretores mais jovens e uma co-inspiração contemporânea para seus pares, seja no campo fílmico, seja em outras mídias. À medida em que sua personalidade e seu trabalho inspiravam um processo libertador para outras pessoas, e inclusive outras obras, Brakhage se tornava cada vez mais apto a aprofundar seu próprio desenvolvimento em cartas e conversações com seus pares. O resultado desse processo está no capítulo “Dança de Respostas” [Respond Dance; por traduzir (n.t.)], um amálgama de seu epistolário recente, editado como uma leitura de texto único e representante de um momento especial de seu desenvolvimento criativo, bem como do estado de sua mitopoética à época em que METÁFORAS foi concluído. Como forma de apresentar Brakhage para aqueles que não o conhecem, e de apresentar seus trabalhos para aqueles que não tiveram a oportunidade de entrar em contato com sua obra, eu farei, no restante desta “introdução”, a transcrição de uma entrevista que tivemos na primavera de 1963. Tudo começou com sua resposta a uma pergunta que eu fiz, sobre como ele e sua esposa, Jane, tinham colaborado e inspirado um ao outro, e se tornou o que talvez seja a mais completa discussão sobre os filmes que Brakhage fez nos anos em que esteve escrevendo este livro.
* * *
STAN BRAKHAGE: Lembro-me bem que, quando me casei, muitos de meus amigos que esperavam que eu me transformasse em um homossexual ficaram amargamente desapontados, frustrados, e consideraram que de acordo com o seu myhtos do que um artista deveria ser, eu estava completamente liquidado. Não era bem uma questão de suas vontades pessoais, mas um compromisso com esse mythos. Um artista casado era uma coisa incompreensível para muitos desses amigos, artistas trabalhando com filmes e outras mídias. Eles tinham por referência todo aquele mythos cuja mais nítida representação está no ORPHEUS (1950) de Jean Cocteau, isto é, no momento em que o filme se desnovela por inteiro e Orpheus é lançado de volta aos braços de Eurydice, instante em que ele, como um poeta em si mesmo, ainda mais intensamente do que como poeta socialmente consciente, se vê completamente aniquilado. Esse mythos foi um dos mais predominantes desse século. Eu tive de lidar com ele no mesmo momento em que a forma-estrutura [form-structure] total de meu trabalho se transformava completamente, à medida em que eu realizava ANTICIPATION OF THE NIGHT. Esse, em certo sentido, deveria ter sido meu último filme: eu tinha visto a mim mesmo, projetado diante de onde eu estava enquanto ser humano, a caminho de um inevitável suicídio através de um outro mito contemporâneo. Definitivamente, aos 26 anos de idade, eu estava ficando velho demais para continuar vivendo e realizando o mito de mim mesmo. ANTICIPATION OF THE NIGHT seria minha via de escape.
P. ADAMS SITNEY: Você está me dizendo que realmente pretendia se matar ao concluir esse filme?
Eu não pensava nessas coisas conscientemente. Foram os eventos que aconteceram depois que me deixaram claro que era isso o que eu desejava. Há meses eu estava mais e mais debilitado com doenças neuróticas; algumas, como a asma, já tinham uma longa história em minha vida, mas outras me eram completamente novas. Naqueles dias, o quarto e o quinto dedos de minha mão esquerda, isto é, os dedos do casamento e da morte, ficaram completamente incapacitados pela artrite; eu não conseguia movê-los, eu estava praticamente de bengalas (com 26 anos de idade, repare). Eu estava derrotado em todas as minhas buscas por amor, tentando escapar de mim mesmo -- exceto no que dizia respeito aos filmes. Mas mesmo as estruturas fílmicas do drama estavam colapsando ao meu redor, como paredes velhas nas quais eu não poderia mais me abrigar. Parecia uma abertura, mas quando essas paredes finalmente caíram, tive a impressão de que não havia nada além de noite lá fora, e então cogitei toda a minha vida como uma antecipação para aquela noite. Aquela noite poderia lançar tão-somente uma única sombra para mim, assumir somente uma única forma negra, a silhueta de um homem enforcado. Essa é a sombra vista na parede, no final de ANTICIPATION OF THE NIGHT. Eu vinha dizendo por meses, sem sequer questionar o motivo, que filmaria a sequência do homem enforcado de maneira espontânea. Por um lado, eu estava hipereditando [hyperediting] o filme, ou seja, concebendo sua formação através de um processo de edição de modo mais intenso do que jamais fizera antes em qualquer outro filme meu realizado até aquele momento. Mas por outro, eu estava dizendo, “Quando eu chegar na sequência do homem enforcado, filmarei espontaneamente. Eu colocarei uma corda ao redor de meu pescoço e fotografarei à medida que as emoções aconteçam, e simplesmente anexarei a seção no final do filme.” Mas só fui entender o que estava realmente pretendendo com isso meses após nosso casamento.
Você se casou enquanto o filme ainda estava sendo feito?
Eu ainda estava editando o filme; especificamente, a sequência do parto da criança, na qual a criança é criada a partir de abstrações, como abstrações d’água, a rosa como um conceito prismático de luzes irrompendo, etc.; em outras palavras, a criança é completamente formada a partir de elementos míticos. Justo naquele momento, fisicamente, alguma coisa em mim estava ansiando ardentemente por outro ser, Jane, no exato momento em que ela, e por razões muito semelhantes às minhas, estava completamente ‘pronta para o fim’ [open-ended]; quero dizer, pronta para um suicídio. Ela entrou em contato comigo e iniciamos nossa relação, encontrando um veículo pelo amor sexual imediato, mas com poder suficiente para que, mesmo prontos para o fim [open-ended] – o sexo-morte, aquela tradição espanhola [Brakhage se refere à poesia dos trovadores provençais dos séc. XI e XII aqui; os fundadores da poética do amor cortês (n.t.)] –, nós tínhamos algo para prosseguir juntos. Mas não tínhamos consciência disso naquele momento. Um mês após termos nos casado, eu estava no gramado da frente de casa com Jane, a quem ainda não via mais profundamente para além de um desejo sexual, e estava colocando uma corda ao redor de meu pescoço, de pé em uma cadeira de cozinha no subúrbio de Denver, com os vizinhos todos se reunindo em suas varandas para se perguntar o que é que o maluco iria aprontar agora. Esses vizinhos já tinham me visto colocar fogo em uma roseira e fotografá-la com uma câmera invertida (a imagem ficou muito miticamente estruturada, muito irreal para que eu pudesse usá-la em ANTICIPATION OF THE NIGHT: ela teve de ser recriada com mais fontes oculares). Enfim, os vizinhos estavam se juntando, me observando colocar a corda em volta do pescoço e fotografar minha sombra projetada contra a parede. Não havia nenhuma necessidade de uma cadeira de cozinha: jamais se via minha sombra para baixo da cintura. Mas alheio à minha própria falta de reconhecimento do que eu estava a fazer de fato, eu tentava reencenar, dramatizar, ou de alguma forma cumprir minha própria profecia de que eu deveria morrer por enforcamento, e estava tentando realizar o que havia planejado. Então lá estava eu na cadeira, fotografando com a corda em volta de meu pescoço, e de repente, por sorte, um amigo apareceu de visita e ele também observava o processo. E eu entreguei a câmera para Jane e disse, “Bom, está aí”, querendo dizer que tinha terminado, e sem perceber ou lembrar que a corda estava em volta do meu pescoço, desci de minha cadeira e fui içado; fiquei em pleno ar por alguns segundos; meu amigo me agarrou, e me colocou de volta na cadeira, e foi aí, subitamente, que eu tive total clareza do que estava planejando fazer. Tive a certeza de que pretendia, por meses, finalizar a edição de ANTICIPATION OF THE NIGHT até aquele momento, ir até o jardim, subir em cima de uma cadeira com a câmera na mão, saltar da cadeira e, uma vez dependurado, filmar o máximo que conseguisse, deixando um bilhete dizendo, “Anexe isto ao final de ANTICIPATION OF THE NIGHT.” Eu tinha de reencenar algo que remetesse a essa intenção. Isso tudo é particularmente apropriado à minha ideia (tal qual expressa em DOG STAR MAN: PART I) acerca do ritmo da vida ser de tal forma que você poderia parafraseá-lo em “dois passos para a frente e um para trás.” Aquele instante, onde não tinha ainda uma clareza sobre como me sentia em relação à Jane, nem para onde que nós iríamos naquela nova configuração, foi o meu passo para trás. Eu tive que recuar; tive que aceitar a minha queda – a corda em volta do pescoço e tudo o mais, e chegar ao mais próximo possível de uma morte, para então entender o que se passava comigo. Era um momento em que eu não estava realmente vendo Jane, ou aquilo que nós dois tínhamos juntos: a força do amor, e o que ele poderia construir: ela era apenas a pessoa que recebeu a câmera quando eu disse, “Bom, é isso!”. Ou então a pessoa designada para cuidar da casa, ou ainda, simplesmente a parceira na cama, com o sexo sendo a pedra de toque do que florescia entre nós, e que nos faria crescer para além de todas as instâncias. Em todos os outros lugares, no entanto, nós não conseguíamos nos perceber, e essa não-percepção que tantos compartilham nos primeiros meses de um casamento se tornou tão decisiva que eu senti, por fim, uma urgência absoluta em filmá-la. Um dia, no meio de uma briga, eu senti a necessidade de pegar a câmera e fotografá-la de novo e de novo. Eu peguei as luzes, e comecei a deixar seu rosto emergir e submergir em negros vãos, em flashes brancos, de maneira que tudo quanto eu pudesse ver se tornasse imediatamente expressivo. Eu movia a luz com uma mão – pintando sua imagem enquanto a luz a trazia e a jogava na escuridão – e filmava ela com a outra mão.
Por acaso este filme em questão seria o WEDLOCK HOUSE: AN INTERCOURSE (1959)?
Sim. Em determinado momento, movido por uma espécie de generosidade que não pude totalmente compreender; (me atravessava um certo sentimento de culpa, enquanto me perguntava qual seria a visão que Jane teria de mim), eu percebi que, em minha leitura, ou naquilo que eu estava imprimindo sobre ela, eu estava me tornando por demais dominante. Então ofereci a câmera para ela, que a aceitou rapidamente. Nós estávamos tentando reencenar nossa briga, e tentando compreender os seus motivos.
Vocês estavam atuando?
Nós começamos atuando, mas à medida em que passávamos a câmera um para o outro, o conflito começou a ser deslocado para uma esfera visual. Jane não tinha tanto conhecimento técnico de câmera, mas sabia o suficiente para fazê-la operar a partir de sua raiva e determinação em capturar aquelas imagens, isto é, sua visão sobre mim, e retê-las para que eu pudesse contemplá-las mais tarde. Suas imagens vieram com tanta qualidade que elas poderiam realmente serem intercaladas com as minhas. Ela também trabalhou a luz como eu havia feito, e começou a praticar a mesma forma de pintura – em minha imagem, com uma fonte de luz móvel; ela automaticamente entendeu a essência de meu estilo em um nível intuitivo, e foi em frente com sua própria versão disso. Era a primeira vez em que estávamos ambos fotografando. Eu filmava a ela, e ela a mim, mas em relação à forma que espraiava de mim. Nós tivemos relances um do outro, em flashes de luz em movimento, como se emergindo de um longo corredor em pura treva. Todas as brigas entre nós durante aquele período se deslocavam para um campo visual, mas você não precisa saber disso tudo, é claro, para assistir WEDLOCK HOUSE: AN INTERCOURSE. Foi extremamente interessante para Jane e para mim que o seu rosto se alterasse tanto ao longo daquele filme, e sempre em referência a mulheres que eu previamente conhecera. Por exemplo, em certos momentos, ela se parece com a garota de INTERIM (1952); em outros, com a garota de DESIST-FILM (1954); em outros momentos ela se parece com mulheres que não estavam em nenhum desses filmes, e em outros (me arrepio em dizer), com minha própria mãe (bendita seja ela). Mas o incrível foi que, sem ter a intenção, e com a luz se movendo interpretativamente mais rápido do que o cérebro poderia seguir, eu estava sendo capaz de forçar, por tais movimentos, toda uma variedade de contextos em sua face que constituíam, na verdade, o que obstaculizava minha capacidade de vê-la como ela mesma naquele momento. E por sua vez, as suas imagens de mim remetiam a imagens de seu irmão e de outros homens que ela conheceu; inclusive, eu estava usando uma camisa do Exército que seu irmão havia descartado, e essa foi uma das imagens mais fortes dele que aparecem no filme. Mas ela não estava consciente disso. O espectador, não tendo conhecimento desses fatos, não teria como sabê-los ao ver o filme. Ainda assim, foi como nós, atônitos, tomamos nota da dimensão formal que nos atravessava. O próximo passo seria compilar esse material e editá-lo. Ficamos tão impactados ao ver aquelas imagens que, de imediato, tivemos uma intensa epifania sobre tudo o que tivemos de lidar - como seres humanos - para fazer com que nosso amor crescesse em conjunto e se tornasse algo mais do que o que poderia florescer em uma cama escura, onde nada senão matéria do corpo estaria acessível para seu puro e sensual crescimento. É a isto que me refiro quando digo que o sexo é uma pedra de toque, mas jamais uma fundação. Fazer do sexo a fundação de nós dois seria algo tão simplório quanto acreditar que a Blarney Stone pudesse fundar a Babilônia; você sabe, horroroso. A fundação deve ser perenemente renovada a cada momento, a cada evento. Inevitável eixo de qualquer fundação ou estrutura, seja para uma pessoa, seja para duas pessoas, seja para uma sociedade, ela deve sustentar onde estivermos a cada momento. E por isso, nós tínhamos de “mantê-la em novidade” na estrutura projetada que tínhamos em mente, no que diz respeito à direção em que estávamos tomando. Essa estrutura, portanto, seria sempre nova, com seu eixo sustentando o momento em que vivíamos, independentemente da dificuldade que seria fazê-la tangenciar aquele momento ou o caminho que pensávamos trilhar. Eu comecei a editar WEDLOCK HOUSE meses depois. Nós tínhamos nos mudado de Denver para Princeton, New Jersey, e eu levei meses para aceitar que aquele material visual poderia se tornar uma obra de arte bem finalizada. Ao contemplar as imagens, eu somente me apavorava, horrorizado. Estava com medo de editá-las, com medo de estar praticando algum tipo de magia negra, amaldiçoando a mínima chance que nós tínhamos de fazer com que o amor fosse a estrutura de nossa vida a dois. Por meses eu resisti e resisti, lutando contra aquele material ao tentar editá-lo, ao tentar fazê-lo apresentável. Até que finamente desisti, e disse a mim mesmo: “se é horror o que me aguarda, então irei em sua direção.” Foi como atravessar a barreira do som: subitamente, a beleza integral do que tinha nos acontecido estava bem ali na minha frente, sã e salva, diretamente do campo de batalha de nossas vidas, estruturando e tornando verdadeiras as cenas daqueles flashes. As últimas sequências me deram uma clara percepção do lugar em que estávamos enquanto eu editava o filme. Eu tinha conseguido editar aquelas imagens de modo a fazê-las expressarem, em primeiro lugar, o amor parental de Jane; depois, suas relações românticas; e então, suas relações sexuais, mas também as minhas, interrelacionando ambas e finalmente trazendo aquele material imagístico [image-material] dos rostos, tanto dela como do meu. Ao ponto em que tudo ficou bastante próximo da maneira como nos víamos no momento em que eu editava o filme, meses após tê-lo filmado. Jane também se envolveu na edição: eu lhe fazia perguntas específicas sobre o que ela via em uma particular imagem de meu rosto, consultando-a sempre sobre sua visão em minhas imagens, mas não sobre a minha visão acerca das suas. Eu usei seus apontamentos para estruturar o trabalho, de modo que o conflito fosse totalmente justo. Quando cheguei no resultado final, a fotografia e o espírito do trabalho estavam tão dependentes de sua visão sobre mim, e das coisas que ela disse sobre minhas imagens, que era como se o filme fosse de fato uma colaboração; na verdade, a sua visão de mim e a minha visão dela finalmente se entrelaçaram tão delicadamente e tão intimamente que o ideal seria dizer que a coisa toda pendeu de fato para um equilíbrio, não a nível colaborativo, mas em termos de realidade.
O filme termina com uma cena de intercurso. Como ela se relaciona com o todo?
O intercurso foi um outro nível da obra. Tínhamos as faces, e os movimentos entre os corredores, a ação dramática, a briga e a cena da xícara de café, e sempre intercalando e entrecortando tudo está o INTERCOURSE, sendo esse, para mim, o próprio curso e o caminho do curso; intercurso. Porque o sexo, como o fio que sustenta a tapeçaria em seu todo, está sempre tecendo por dentro e por fora das imagens. E sustentou o todo precisamente na medida em que todas as cenas de intercurso se mantiveram distintas das cenas dramáticas. Se tornou algo como uma “trama-urdidura” [warp-woof]. Você pode chamar o intercurso como “trama” ou como “urdume”, como preferir; o que quer que escolha, as cenas dramáticas serão o outro. A beleza da cena final é que, enquanto, até ali, cada momento do filme partia das cenas de intercurso para as cenas dramáticas ou de conflitos, ou de buscas, etc., por meio de cortes plásticos sobre uma determinada parte do corpo, no final do filme o rosto de Jane se transforma em um branco puro e luminoso, e o intercurso surge a partir deste branco, se tornando a cena mais completamente plástica do filme.
Seu próximo filme foi CAT’S CRADLE (1959), não foi?
CAT’S CRADLE foi filmado em seguida, mas não foi editado em seguida. O próximo filme a ser editado foi WINDOW WATER BABY MOVING (1959). CAT’S CRADLE revelou um problema crucial na ocasião, porque Jane tinha uma certa imagem sobre o que esperar de um casamento, e era uma imagem bem desinteressante para ela; é algo muito comum em nossa idade. Mas a minha concepção sobre casamento derivava do casamento de dois grandes amigos meus, James Tenney e Carolee Schneemann, que se casaram logo após realizarmos LOVING (1957), onde eu os percebi como amantes perfeitos. Eles estavam profundamente envolvidos no mythos de uma criação de filmes através do apaixonar-se, e o amor que encontraram um pelo outro, bem como seu próprio casamento, seria como uma idealização daquele mito. Tolo como eu era, e como muitos jovens maridos são, senti uma urgência de levar Jane para conhecê-los, e conviver com os dois; fomos visitá-los em Vermont, e ficamos com eles por duas turbulentas semanas. Muito naturalmente, Jane, não comungando de meu mythos matrimonial, e muito menos aceitando o de outro homem e o de outra mulher, resistiu tremendamente a toda aquela fantasia. De fato, eu estava tentando pegar uma forma ideal de casal e realizar um casamento a partir daquilo; não era tão diferente de pegar uma forma ideal de um biscoito para cozinhar biscoitos. Havia um nível extraordinário de sarcasmo no ar, particularmente entre as duas mulheres. Mulheres sempre foram notáveis neste quesito, você sabe bem, uma resistindo a outra através de alusões mordazes e fantásticas, de modo que os homens, se não lhes escutarem detidamente, jamais perceberão o que se passa. De minha parte, eu estava me esforçando tanto para me identificar com Jim, enquanto homem, que existem imagens em CAT’S CRADLE nas quais não se pode realmente distinguir se é Jim ou se sou eu a quem se assiste, mesmo considerando que ele usava barba, e eu não. Como é possível explicar esse tipo de magia visual? Eu também estava tentando sobrepor Jane em relação a Carolee Schneemann, e falhando miseravelmente em todos os aspectos. A pedra de toque da situação, como um todo, parecia estar no fato de que o gato que pertencia a Jim e Carolee aparentemente entrara no cio logo após nós termos chegado, e incrivelmente, permaneceu no cio durante todo o tempo de nossa estadia lá. De modo que o gato se tornou a fonte de uma objetividade sexual imediata, e eu não o percebia simbolicamente para além disto. Mas como eu não tinha tempo para me ocupar com símbolos e tampouco tinha filme o suficiente para gastar tentando criar estruturas simbólicas, eu tinha de aceitar diretamente a forma-estrutura que estava emanando a partir daquele gato. E assim, aquele gato se tornou uma fonte de “hiperformas” (hyperforms) e uma pedra de toque para tudo o que acontece, visual e formalmente, no filme. Como não me preocupei em conceber dramas, eu comecei filmando sequências muito curtas que se entrelaçariam entre si, formando cenas inteiras. Mas para isso eu precisava colocar a imagem, a idée fixée, fora do caminho, de modo que eu conseguisse enxergar o que não estava na superfície, e assim prosseguir. De tal maneira, Jim e Carolee poderiam continuar desimpedidos pelo mito, e poderíamos todos ser amigos; mas antes houve essa batalha tremenda, que teve de acontecer primeiro.
Mas o filme não mostra muito acerca de uma batalha. Quero dizer, eu não percebi nada do tipo no filme.
Bom, veja, seria difícil para mim desvencilhar-me dessa experiência de conflito, pela vivência aguda que tive dela. Mas as pessoas me dizem que o filme é bastante lírico e eu acho que, provavelmente, é como uma canção que usa tão absolutamente o seu material que se torna um tanto dolorosa de lidar; como um poema sinfônico, que resiste em conter uma ideia de separação. Uma chave de leitura para ele, que descobri depois, está numa citação de Freud que Durrell utiliza no prefácio de JUSTINE (1957). Freud escreveu em uma carta, “Estou me acostumando à ideia de encarar cada ato sexual como um processo no qual quatro pessoas estão envolvidas.” Da mesma maneira, tudo o que é sexo dentro de CAT’S CRADLE tenderá a ser interrelacional; isto é, não existe sexo que não envolva quatro pessoas, com o gato sendo o medium visual do cio. Por vezes, é difícil de dizer se existem quatro pessoas de fato, se são três ou se são duas. Uma pessoa chegou vê-lo como um retrato individual. E há quem veja apenas o gato. Claro, tudo isso funciona, porque seja qual for o nível em que se olhe para o filme, ele ainda contém aquela canção lírica, senão sobre uma luta, então sobre o amor e as suas complicações criando as possibilidades de um casamento. É isto que está em jogo ali; CAT’S CRADLE é uma referência a uma brincadeira de barbantes para crianças [cama de gato (n.t.)]. O gato é como o seu ponto de partida; é como um “berço das civilizações”, ou mesmo uma “cama de gatos” em seu sentido lúdico. Ou seja, é muito simples... são apenas duas mãos e um barbante; mas em dado momento, essas duas mãos já não serão o suficiente para o jogo e você precisará de quatro mãos; você precisará de mais duas mãos externas para conseguir mover os barbantes e criar essa “cama de gatos.”
E sobre WINDOW WATER BABY MOVING?
Nesse filme, Jane estava tão envolvida em sua luta para desbaratar meu mito do que deveria ser um casamento ideal, de modo que pudéssemos nos tornar livres, que ela não tinha como estar realmente presente durante as filmagens, a não ser como... veja bem, observe a fonte de inspiração que ela estava me oferecendo a cada cena, a cada momento, enquanto ela resistia a se submeter ao ideal de vida de qualquer pessoa que fosse. Na filmagem de WINDOW WATER BABY MOVING, Jane e eu estávamos tão distantes que nos vimos prontos para ficar juntos.
Você estava em Bruxelas em algum momento da gravidez de Jane, não foi?
Eu estive em Bruxelas por um mês, para visitar The Exposition of Experimental Film (A Mostra de Filme Experimental). Foi no começo de sua gravidez. Depois, fui para Genebra, para um trabalho comercial. E isso foi durante o sétimo ou o oitavo mês de gravidez. Eu comecei a me envolver pela morte. Foi quando eu reuni material para THE DEAD (1960), que foi editado três anos depois. Havia um aspecto da experiência do parto que me parecia bastante perigoso. Novamente, enquanto continuava subconscientemente carregando o peso de meu suicídio projetado, e lançando-o adiante, eu comecei a elaborar a noção de que uma criança poderia tomar o meu lugar em vida, liberando-me para morrer. Essa ideia foi se tornando mais e mais intensa, à medida em que nos aproximávamos do momento do parto. Eu tinha duas coisas que me impediam de abraçar completamente este mythos: 1) seria um menino ou uma menina? Se fosse um menino, seria um substituto mais adequado para mim (isso era tudo a nível subconsciente, coisa que depois eu fui percebendo, por causa da expressão fílmica que produzi). 2) Jane teve rubéola aos três meses de gestação, e por isso tínhamos uma em tantas chances de termos um "parto monstruoso". Jane estava compreensivelmente preocupada com o parto, cada vez mais distante de preocupações estéticas e certamente alheia a desejos de morte. No entanto, estava tão profundamente sensível aos perigos que me afligiam que, depois de tudo, ela me contou que apesar de ter querido um menino, ela torcia para que fosse uma menina; de alguma forma, ela sentia que ter uma filha seria menos perigoso para mim. E ela se deixou envolver pelos seus próprios processos corporais, alcançando-me através deles, e finalmente realizando o parto da criança. Para mim, tudo isto aconteceu em um nível perceptivo... de modo que eu queria que o filme ganhasse uma forma que não o remetesse a um filme caseiro, ou a um filme médico, mas antes, que contivesse a razão absoluta para se ter aquela criança, incluindo aí quaisquer desejos de morte subconscientes, bem como nosso próprio sentimento de amor, começando desde o corpo, e com tudo o que sabíamos sobre casamento até aquele ponto.
Ela se incomodou com você filmando o parto?
Não. Ela percebeu que era como eu poderia estar presente ao máximo. É por isso que lutamos tanto até conseguirmos realizar o parto em nosso lar. Era mais importante para Jane do que para mim que eu estivesse presente com ela, quando a criança nascesse. Então, o nosso pretexto para que isso fosse possível foi realizar um filme sobre o próprio parto. Nós dois sabíamos que eu poderia estar ali o mais intensamente possível se estivesse criando um filme enquanto ela dava à luz. Quando a mulher avança ao segundo estágio do trabalho de parto, e começa a empurrar o bebê para fora, no mínimo ela se torna intolerante a qualquer tipo de distração; não é nada incomum que se torne agressiva ao próprio marido, mesmo que em outro contexto ele seja digno dos maiores elogios. Os homens, nesse momento, se tornam bastante inúteis. Em certo momento Jane me disse “eu amo você” (e isso foi uma grande alegria para mim), e então ela imediatamente acrescentou “por favor, me deixe em paz”, e depois “você está filmando?”. Ela queria que eu estivesse presente, mas sem atrapalhar ou incomodar seu próprio labor. Também não é incomum que a mulher, nesse estágio, estabeleça uma ótima relação com o seu médico; ele é capaz de receber a criança, ajudando-a a nascer. Mas um marido, frequentemente, está muito envolvido emocionalmente para conseguir ser útil. Eu literalmente não teria conseguido testemunhar o parto se eu não estivesse trabalhando em sua filmagem. Tenho certeza de que teria desmaiado, mas como eu estava trabalhando, intensamente envolvido em meus próprios anseios, Jane e eu conseguimos estar juntos da maneira mais clara e nítida possível.
Quem filmou você?
Ela, logo após Myrrena nascer. Ela já tinha me dito muito antes, “Eu também quero um retrato seu quando acontecer” (nós tínhamos imagens minhas de antes do nascimento, e Jane e eu nos beijando, e da minha mão), “Você não desejaria um retrato seu? Você precisa de um.” Quando eu respondi, “Tudo bem, mas quem o fará?”, ela me falou: “Eu vou fazer.” Eu disse que concordava, mas não contava que ela teria forças para fazê-lo. Claro, foi a primeira coisa em que ela pensou após Myrrena nascer: ela me disse, “Me dê a câmera.” Eu, que já não conseguia mais pensar no que fazia, simplesmente entreguei a câmera para ela. Jane filmou todas essas imagens de meu rosto. Eu me sentia cada vez mais orgulhoso dela, cada vez mais orgulhoso do bebê, deles terem realizado tudo aquilo; eu estava fora de mim. E ela, recém-saída de um trabalho de parto, filmava o meu rosto. Consegue perceber o que estava acontecendo ali?
E o que você fez depois de WINDOW WATER BABY MOVING?
O próximo filme que editei foi o CAT’S CRADLE. Nós nos mudamos de Princeton para as montanhas de Boulder, no Colorado, onde eu comecei a trabalhar em CAT’S CRADLE. Nós moramos em Silver Spruce, que foi o mesmo lugar em que moramos durante toda a filmagem de DOG STAR MAN. E logo antes de começar a filmar DOG STAR MAN, PART I, eu editei CAT’S CRADLE.
Você tinha alguma ideia sobre o rumo que DOG STAR MAN tomaria?
Não. Ao menos, todas as ideias que eu tive se provaram irrelevantes subsequentemente. Então, suponho que o próximo filme a ser discutido seria o prelúdio de DOG STAR MAN. Eu tinha outros filmes em processo; por exemplo, eu tinha filmado SIRIUS REMEMBERED (1959) logo após o filme sobre o parto de Myrrena, e eu o editei logo depois de CAT’S CRADLE.
SIRIUS REMEMBERED é outro poema sobre a morte.
É outro poema sobre a morte.
E como você o relacionaria à sua concepção psicológica mais geral acerca da morte?
Eu tinha reunido material para THE DEAD, mas não cheguei a editar. Esperei por uns dois anos até editar o filme. Nesse meio tempo, nosso cachorro, Sirius, a quem nós adorávamos, foi atropelado por um carro e veio a falecer. Nós o deitamos diretamente sobre o solo, por causa dos ideais de Jane sobre a morte. Ela disse que era belo e muito natural encontrarmos ossos de animais mortos na floresta. Ela, por suas próprias demandas psicológicas, não apreciava a ideia de enterrar qualquer coisa que fosse. Acho que estávamos no meio do inverno e o solo estava duro, de modo que concordei com ela, e deixamos Sirius debaixo de uma árvore, em um pequeno campo que chamávamos de Happy Valley (Vale Alegre). Depois disso, sempre que porventura eu saía pelos fundos de minha casa em Princeton, eu passava pelo cadáver, e percebia que ainda não tinha começado a se decompor. Estava congelado e preservado, no meio do inverno ainda. E sempre que eu o via, eu chorava com uma urgência que, para mim, era incompreensível. Porque eu estava encarando, subitamente, o centro da minha vida através da morte de um ser que eu amava, e isto abalava todas as minhas noções abstratas sobre a morte.
Eu lembro de um momento particularmente maravilhoso, que me deu uma compreensão de como os outros poderiam evitá-la. Parker Tyler e Charles Boultenhouse vieram nos visitar e Charles queria caminhar um pouco pelos campos, “pegar um pouco da natureza”, como ele disse. Naquela época, “natureza” constituía um dilema tão grande para mim que lembro de ter ficado chocado com suas palavras. Charles preparou alguns martinis, me ofereceu um e, na sequência, Parker, Charles e eu fomos para Happy Valley, onde eles brindaram a primavera porvir, etc., e nós avançamos exatamente na direção em que o corpo de Sirius estava, mas passamos por ele sem percebê-lo em absoluto (isto é, sem notar mais do que o que se pode ver em SIRIUS REMEMBERED); quando muito, se eles o notaram, se recusaram a reconhecê-lo como tal. Enquanto Charles estava enlevado neste ideal de brindar a recém-chegada primavera, ali tínhamos esse cadáver putrefato, fedorento, bem ao lado da trilha em que nós caminhávamos e que literalmente, ou não o vimos ou não podíamos ou não queríamos vê-lo. Mas essas três atitudes, ao que me parece, nascem de uma mesma origem.
Quando foi que você decidiu filmar o corpo?
Eu o filmei durante aquele inverno, e fotografei as últimas cenas no dia anterior à chegada de Parker e Charles. Naquele momento, o cadáver já estava bastante decomposto. Eu chorei em todos os dias de filmagem. Ia sozinho com a câmera e fotografava, capturava as imagens. Jane me disse algo, depois de ver o material filmado, que me fez perceber a profundidade do que se manifestava ali. Ela sabia algo sobre cachorros. Ela me disse que toda vez que eu ia filmar o corpo, 1) eu estava tentando trazê-lo de volta à vida, colocando-o em movimento mais uma vez; 2) eu estava erguendo-o simbolicamente, ao posicionar a câmera em um ângulo que tendia a fazer com que sua imagem se tornasse ereta sobre a tela; 3) (e isto era realmente significativo) Jane tinha observado, em mais de uma ocasião, que os cachorros costumam fazer uma dança esquisita ao redor de corpos mortos, e não só os de sua própria espécie, mas também de outras; é como uma dança circular: os cachorros, individualmente ou em matilha, costumam circular a carcaça, esfregando muito sensualmente seus pescoços no cadáver e se perfumando com o fedor da decomposição em andamento. E esses eram, literalmente, os mesmos movimentos que eu executava ao fazer SIRIUS REMEMBERED, sem me dar conta. Jane desvelou completamente o mundo animal para mim; me refiro a essas partes animalescas que carrego, e que naquele momento estavam em ação na filmagem do corpo.
Mas também noto ali duas referências intelectuais: 1) a influência de uma fonte musical bastante rígida e formal – possivelmente Webern; e 2) Gertrude Stein, que sempre lhe exerceu uma influência. Como você vê o seu relacionamento com as formas musicais?
Naquele momento, eu estava lutando para aceitar a decomposição de uma coisa morta, e a decadência das memórias de um ser amado que morrera, e todos os conceitos abstratos que eu tinha acerca do que seria a morte se viam abalados a partir disso. A forma surgiu, suponho, da mesma necessidade fisiológica que faz com que cachorros dancem e uivem, em ritmo, ao redor de um cadáver. Eu utilizei a ideia de canção como uma fonte de inspiração pela sua estrutura rítmica, assim como a dança macabra dos cachorros, empinados ao redor de um cadáver, uivando em estruturas rítmicas ou em intervalos rítmicos, pode ser considerado como o nascimento de alguma espécie de canção. Mas não pretendo adivinhar qual seria sua urgência.
Mas então Webern não foi uma influência?
Não naquele momento; eu fui sim influenciado por Webern. Webern e Bach foram influências dominantes em ANTICIPATION OF THE NIGHT. Embora a estrutura que dominasse ritmicamente SIRIUS REMEMBERED, provavelmente, fosse o jazz... ou não; não, não o jazz... seria a canção, a canção simples, em sentido mais despojado, era isso na verdade – canto gregoriano! Esse era o tipo de uivo, a estrutura rítmica que predominava em SIRIUS REMEBERED.
E como você se sentia em relação a Gertrude Stein?
Eu diria que a maior influência que ela teve em SIRIUS REMEMBERED foi através de minha realização pessoal de que não existe repetição; cada vez que uma palavra é “repetida”, ela se torna uma nova palavra, por força da palavra que a precede e daquela que a segue, e assim por diante. Isto me libertou para “repetir” os mesmos movimentos. De modo que eu poderia literalmente me movimentar para trás e para a frente sobre o animal, repetindo esses padrões. Existem três partes nesse filme: primeiro, temos o animal tal como visto no outono, recém falecido. Depois, temos as cenas de inverno, na qual ele se torna uma estátua coberta com neve, e então há a última parte, com o degelo e a decomposição. Esta terceira seção é toda ela uma espécie de re-membrar*, reunindo seus membros uma última vez; lembrar como um. É onde todos os momentos anteriores de sua existência enquanto cadáver, no outono, na neve de inverno, no degelo, acontecem novamente e reiteradamente, recapitulados e intercalados. Gertrude Stein me deu a coragem de deixar as imagens se apresentarem desta forma, sem que houvesse uma sensação de repetição.
*nota do tradutor: re-membrar = REmembered, no original ("RE" em capitais no original); optei por manter o jogo de linguagem entre member (membro) e remember (relembrar; lembrar), dentro do contexto de um cadáver ao qual Brakhage, poeticamente, tentava reanimar. A expressão “lembrar como um” é um adendo do tradutor ao texto.
Você já comentou sobre os efeitos da neve e da brancura. Isso se deu em um momento anterior a PRELUDE, quando você estava trabalhando em THE DEAD. E tendo falado antes sobre a força poética da luminosidade branca, você parte, a seguir, para imagens da neve em SIRIUS REMEMBERED. Teríamos aí um motivo?
Sim, existem alguns motivos que emergem ao longo de minha obra, mas é em SIRIUS REMEMBERED que alguns deles acontecem com maior nitidez. Um exemplo seria “a árvore.” De novo e de novo, faço uma pan com a câmera, subindo do cadáver para a altura de uma árvore. Eu não sabia exatamente a razão disso, mas agora percebo que estava plantando as primeiras sementes do que seria a minha preocupação com a imagem da árvore branca que predomina em DOG STAR MAN; lembre-se, a estrela-cachorro [dog star] é Sirius. Então, ali, pela primeira vez a estrela-cachorro está surgindo, seja através do relacionamento entre homem e cachorro, seja pela minha própria projeção de mim mesmo no cadáver do animal. Minhas abstrações sobre a morte estavam ali colidindo com a visão de um cadáver em processo de decomposição; primeiro, enquanto ele não se decaía à condição de ossos brancos, puros; e depois, quando ele de fato o fez. O que finalmente tivemos de encarar, no que se refere a esses ossos, foi algo um tanto irônico. Nós já tínhamos adotado outro cachorro, que batizamos de The Brown Dog (“O cachorro marrom”). Queríamos que ele fosse o oposto do que Sirius foi. Era um vira-lata que salvamos da morte em um canil; deliberadamente, não lhe demos nenhum nome pomposo, mas o chamamos continuamente de The Brown Dog, como se ele não tivesse nenhuma identidade própria. Os eventos que possibilitaram a última sequência de SIRIUS REMEMBERED foram os seguintes: o odor da carne putrefata estava tão intenso no vale que começou a chegar em nossa casa, sem que nos déssemos conta de sua origem. Em primeiro lugar, não sabíamos o que era aquilo. Pensávamos que era um rato morto preso dentro da parede, algo assim. Depois, começamos a nos perguntar se soprava pelas janelas desde o Happy Valley, que estava a uma quadra e meia de nossa casa. Na noite seguinte, começamos a sentir o cheiro vindo diretamente do The Brown Dog, e então percebemos que ele estava se perfumando com o cadáver. Nós tentamos brincar com a situação; chamamos de “cheiro de merda de ovelha” [sheepshit smell]. Tentamos chamar também de “queijinho” [cheese]; tentamos chamar aquilo de qualquer coisa que fosse ao invés de encarar a situação. No dia seguinte, eu tive de ir ver a coisa com meus próprios olhos, e forcei Jane a vir comigo. Nós descobrimos que o corpo vinha sendo devorado, e quem estava se refestelando com ele era o nosso novo animal de estimação, The Brown Dog. Quando nos aproximamos do corpo, The Brown Dog sentou-se inocentemente perto do cadáver e começou a morder e devorar um pedaço da perna. Além disso, percebemos o que fazia com que os ossos se tornassem limpos e brancos: a carne era devorada até o limite. Não ficamos insensíveis às implicações psicológicas do modo pelo qual nosso cachorro quis nos demonstrar como ele estava se apropriando dos poderes de Sirius. É muito significativo para nós que “The Brown Dog” tenha se tornado o cachorro-estrela de DOG STAR MAN. Jane não conteve as lágrimas; a ideia da morte como um acontecimento vital ganhava força indiscutível. Nós começamos a nos perguntar o motivo dos cachorros se perfumarem daquele jeito. Penso naquele poema de Baudelaire, onde ele fala com desprezo da multidão por ser como o seu cão, que detesta o cheiro de perfume mas gosta de se banhar em merda. Bem, Baudelaire não percebeu a profundidade do fedor. Eu me tornei capaz de notar aquele cheiro no centro de qualquer carne comestível. No bacon para o café da manhã estava o mesmo cheiro que provinha do Happy Valley. Eu também comecei a notá-lo nos perfumes femininos; em seu núcleo, a maior parte dos perfumes se constitui de matéria morta, bastante comparável ao odor do cachorro morto. Sempre que eu me começava a editar SIRIUS REMEMBERED, eu tinha um acesso de diarreia. Era como se eu estivesse purgando toda aquela putrefação, de alguma forma. Sempre que o processo de edição se tornava intenso naquele filme, eu tinha isso. E através daquele filme, outras visões começaram a emergir com extrema intensidade, e se tornaram muito importantes para DOG STAR MAN. Uma noite, depois de Jane ter se retirado mais cedo para dormir, eu fiquei trabalhando. Deviam ser por volta de duas horas da manhã, e eu subitamente senti Jane atrás de mim. Ela me entregou uma pequena planta seca, que eu coloquei em cima da mesa. Ela estava sempre trazendo pequeninas coisas da floresta para mim. Mas eu notei que a planta começou a se mexer. Sempre que eu olhava para ela, ela estava apontando para uma direção diferente. E então reparei que era eu que estava fazendo bastante vento e movimento com meus braços, e que por isso ela se dobrava e girava. Mas ela se tornou uma espécie de talismã forjado por sua própria morte. Eu a observava detidamente. Ela se tornou uma fonte de inspiração para mim. No dia seguinte, Jane me disse que não se lembrava de ter me trazido aquela planta. Outras coisas esquisitas começaram a acontecer na sequência. Uma noite eu estava preso em um determinado corte, lidando com a decomposição do corpo. A decomposição é um processo de longo termo de desfazimento da matéria através de seu próprio interior; uma lenta transformação, com produção de calor. Quanto mais intenso seu estágio estava, mais calor era produzido, ao ponto de derreter a própria neve que cobria o corpo. Eu estava preocupado em como editar aquilo, em como encontrar uma forma rigorosa para tratar de um processo tão longo. Tinha de ser uma forma tão sólida quanto a imagem petrificada de Sirius coberto com a neve branca, tal qual uma espécie de estátua. E eu estava tendo dificuldades de realizar o corte às três horas da madrugada, quando de repente tive a clara sensação de que três pessoas me olhavam por sobre meu ombro. E enquanto eu comecei a virar, algo se passou através de mim; escutei uma frase em minha cabeça, “ele pensa que temos alguma coisa a ver com o que ele está fazendo”, como se dito bem sarcasticamente. Eu fiquei imediatamente deprimido, abatido em desespero. Não tenho nenhuma explicação racional sobre a origem dessas palavras. A frase parecia atropelar qualquer das linhas de raciocínio que eu estava seguindo naquele momento, como se tivesse sido imposta ou então arremessada sobre mim. Considere todo o resto de meus pensamentos como cordas se movendo a partir de um determinado centro de consciência; subitamente, por meio de alguma subconsciência tão poderosa que me parecia vir de outra instância, veio essa frase maldita que derrubou todas as minhas sensibilidades e me lançou, em um átimo de segundo, na mais terrível melancolia que senti em toda a minha vida. Eu parei de trabalhar. Eu me senti como um homem completamente destruído. E uma fração de segundo depois, eu tive a sensação de uma envolvente circularidade sobre mim, como se eu estivesse dentro de um globo. Esse globo ressonou com palavras, mais uma vez escutadas de dentro para fora, como se por obra de meu próprio pensamento; e no entanto, eram alheias a ele: “Eles pensam que nós não temos NADA a ver com o que ele está fazendo.”
Quem era esse “nós”?
O “nós” se referia à voz que estava falando e às três entidades que haviam falado antes. E nesse instante, tudo se tornou claro em minha mente; eu senti um prazer sublime. E comecei a perceber como poderia fazer aquele corte. Instantaneamente, era como se o ar tivesse se tornado táctil e gelatinoso, quase como se aquela força envolvente tivesse interrompido e deixado essa massa gelatinosa em seu lugar. A coisa mais próxima a isso que eu poderia pensar, embora fosse como um cartoon do sentimento, era como um Buda, como a sensação de um enorme bebê Buda, inteiramente obeso, gigantesco e gelatinoso. Era uma força caótica para mim, oriental ou estrangeira, e novamente falou, como se gotejando a frase: “Ele” (referenciando-se à última voz que falara) “pensa que nós” (se referindo a todas as vozes que falaram) “temos ALGUMA COISA a ver com o que ele” (se referindo a mim) “está fazendo”. E novamente a intensa e desesperante melancolia se abateu sobre mim, como nunca na minha vida eu conheci. E que mais uma vez, foi suplantada por outra sensação de voz, surgindo de dentro de minha mente para fora, envolvendo-me, com um sentimento conclusivo: “Ele” (referindo-se à última voz falante) “pensa que nós” (referindo-se a todas as vozes falantes) “temos NADA a ver com o que ele” (referindo-se a mim) “está fazendo.” Foi como se houvesse algum poder que estava me ajudando de dentro para fora, e que me libertou para trabalhar maravilhosamente pelo resto daquela noite, de modo que o filme foi concluído dois dias depois.
Como você explica essas vozes?
Eu não tenho nenhuma explicação para as vozes, além de tudo isso que lhe disse.
Você acredita que isto foi uma visão?
Eu não sei. As únicas percepções visuais que tenho sobre o que poderia ter falado me parecem como cartoons um tanto toscos. A primeira me parecia grega; me sugeriu um sentimento de religião grega. Mas isso seria uma aproximação simplória do que eu senti. Era como se fossem três mulheres gregas, ou três homens gregos, eu não sei ao certo. Provavelmente homens, ou hermafroditas. A segunda voz era como um círculo. A terceira voz era como um Buda, ou como um bebê gelatinoso, gigante. A quarta voz era tão absoluta e abrangente que eu não consigo sequer imaginá-la.
Você costuma ouvir vozes?
Sim, com frequência. Mas nunca nada nessa ordem de extraordinário; aquilo foi tão incrível, e contudo real, que imediatamente me deu uma poderosa liberdade para seguir em frente e finalizar o filme. Quando eu estava concentrado editando o processo de decomposição, Jane olhou para as imagens e reagiu instintivamente. Ela começou a limpar a pia, a varrer, varrer, limpar a casa inteira. Ela disse, de modo misterioso, “Eu não posso falar sobre isso”, “Eu estou muito ocupada.” Eu perguntei “Qual é o problema?”, e ela disse, “Olha, eu me sinto suja.” De repente, percebi que ela estava como que engajada por aquela seção do filme, e ali foi a primeira vez que entendi que queria uma espécie de forma fechada, em clausura; uma forma que não envolvesse as pessoas assim. A seção sobre a decomposição deveria ser editada de uma maneira tão delicada e estruturalmente bela que ninguém sentiria a urgência de se limpar ao assistir.
Então você acredita que as boas obras de arte devem evitar um engajamento pessoal do público?
Sim. Daquele momento em diante eu fiquei completamente convencido disso. Jane foi a fonte de minha inspiração mais uma vez.
Mas em seus primeiros filmes, você buscou esse engajamento, certo?
Sim, com certeza. Mas hoje eu privilegio aquilo que em meus primeiros filmes me parece ser o fator menos engajante. E é a única coisa a qual me permito olhar por todos esses anos, e ainda aprender algo a respeito neles. Porque tudo o que em meus primeiros trabalhos me parece ansiar por um engajamento me entedia atualmente. Esses dias, a minha luta é criar cada trabalho dentro de uma completude em si mesma. Eu comecei a articular meios de criar uma forma não-engajante [unengaging] ao observar a reação dela, sua re-ação [re-action]. Ou seja, pela primeira vez minha preocupação central ao trabalhar foi nossa própria necessidade insurgente, tanto de Jane como de mim, e não mais somente a minha. Foi como se eu tivesse me tornado capaz de proposicionar o centro de um processo de trabalho entre nós dois. De certa forma, esse processo de trabalho que começou a se desenvolver entre Jane e eu foi dependente da necessidade emergente de nossos impulsos, lançada não exatamente entre nós, mas em algum lugar que é a forma de nós dois, e que todavia... não nos enclausura. Termos como IN BETWEEN [entre; no meio entre dois (n.t.)] e INTERIM [ínterim] e todos esses “ins” ou todos esses “outs” como RE-FLECTIONS [re-flexões], “re” isso, “re” aquilo, "re-posicionamentos": eles deixaram de existir. Nós começamos a viver em uma relação direta, com um propósito maior do que um ao outro ou a essas dicotomias. Nós habitamos em um mundo onde o Oriente nos oferece algum sentido pela via Zen, onde bem e mal, sim e não, cessam de existir como pontos opostos e se tornam uma coisa só. O símbolo perfeito disso é o yin e yang, coligados dentro de um mesmo círculo. A forma surge diretamente da linha fronteiriça entre os dois, que contém toda a sensualidade de seu encontro. Eu não sei como colocar isso em palavras, mas quando um homem e uma mulher possuem isso, e dão luz a uma criança, aquela criança não é uma coisa enclausurada entre eles. Ela é uma coisa que foi concedida ao mundo; aquela criança é livre para viver a sua própria vida, para ter a sua própria forma, seu próprio desenvolvimento. Eles sempre protegerão a criança. Cuidarão de suas necessidades a partir das suas próprias, oferecendo a ela todo o seu amor. Ou seja, a criança é algo externo a eles, e desde o primeiro instante, eles não esperam que a criança viva a sua vida por eles. Não lutam sobre ela, não a sufocam. Nesse sentido, a obra de arte surgindo de um processo formado da necessidade total e compartilhada por Jane e eu é como uma criança nascendo desse tipo de amor: um ser livre em relação a nós dois.
Você gostaria de voltar para a discussão dos filmes? Estamos prosseguindo em uma série de abstrações.
Não, ao contrário, acho que estamos falando de forma bastante concreta quando falamos do que surge das necessidades da vida, ao invés de tratar somente sobre aquelas da estética. Falar sobre as formas totais sem compreender a maneira pela qual elas surgem das experiências imediatas da vida é o que é terrivelmente abstrato.
Você poderia comentar sobre THE DEAD agora?
No momento em que eu comecei a editar THE DEAD eu já tinha filmado a maior parte do material para DOG STAR MAN. Jane e eu fomos até a montanha onde ela fez todas as imagens de mim e, sem que eu a dirigisse, ela as capturou fácil e rapidamente dentro das formas que me interessavam. Ou seja, nossa necessidade compartilhada estava tão alinhada que não precisávamos sequer trocar direções. Ela poderia estar longe de mim, e eu gesticularia vivamente e ela entenderia de imediato, e fotografaria alguma imagem ou a mim mesmo em uma relação de imagem-estrutura [image-structure] que era precisamente o que eu queria.
Você disse que filmou tudo em DOG STAR MAN. Você se referia à PART I e PRELUDE?
Não. Eu me referi ao material inteiro de DOG STAR MAN.
E esse material iria para todas as quatro partes?
Sim, eu pensei isso quando filmei tudo naquele momento, mas agora percebo que preciso de mais. Naquele momento, eu estava persuadido de que tinha tudo o que precisava para o que eu pensava que seria aproximadamente quatro horas e meia de trabalho. Mas agora estou indeciso quanto a isso. Eu não tenho sequer certeza se consigo terminar esse filme. Em primeiro lugar, sempre que eu tinha de ser filmado a alguma distância, Jane tinha de fazê-lo. E então tivemos ocasiões em que ela saiu com a câmera para capturar imagens que eu pressentia que ela poderia fotografar melhor do que eu, e com uma claridade total maior. Certa vez, fiquei doente e não pude sair para filmar o sol em seu crepúsculo; o céu estava tendendo para o que eu sentia ser necessário em um certo momento do filme, e Jane correu para capturá-lo, trazendo muito mais do que eu poderia esperar. De modo que me senti cada vez mais inclinado a convidá-la a acrescentar sua visão à minha, para uma visão total mais compreensiva. Algumas crises se apresentaram a mim durante as filmagens de DOG STAR MAN de um modo que não me foi propriamente consciente. Eu realmente não parei para pensar o motivo pelo qual eu decidi - tentando mostrar o trabalho da vida de um homem nos termos de uma ação simples, a desenvolver-se ao longo de um dia - que esse homem seria um lenhador. Eu não sabia sequer a razão pela qual deixei meu cabelo e minha barba crescerem tanto. Eu experimentei para ver o que acontecia, e subitamente se tornou algo crucial para o filme.
Quão longos eles ficaram?
Meu cabelo estava abaixo dos ombros, e minha barba estava a meio caminho de meu peito. Era uma coisa difícil de se conviver. Quero dizer, caminhar pelas ruas de Boulder, Colorado, carregando esse tipo de imagem... mas eu sabia que de alguma maneira eu precisava daquilo. Eu me projetei como um lenhador com um machado, e comecei a subir a colina. O cachorro estava sempre me seguindo e entrando na frente das lentes. Comecei a aceitar isso e percebi a necessidade para o lenhador de ter um cachorro. Também me surpreendia a cada momento com a quantidade de material que filmávamos, a cada frequente impacto visual que tínhamos. Eu via a floresta inteira em correlação com a história da arquitetura, e particularmente com a história da arquitetura religiosa, ao menos no que diz respeito ao Ocidente. Sentindo a estrutura, a arquitetura, a história do mundo como se emergissem dali, comecei a ver acontecimentos prismáticos através do cair da neve, etc., como se em correlação com os vitrais católicos, para dar um exemplo. Isso não acontecia enquanto eu fotografava, mas frequentemente coisas inesperadas vinham através da fotografia de Jane. Sem me dar conta do motivo, eu arrastei uma árvore branca por dois terços acima de uma montanha, replantei ela em um dado local e então lutei contra ela, e a empurrei. Como se estivesse lutando contra mim mesmo, ou contra algum outro homem ou monstro, eu lutei contra aquela árvore branca, a derrubei e a cortei. Quando assim o fiz e me sentei para pensar a respeito depois, eu comecei a me dar conta do motivo de eu ter voltado a ter ataques de asma novamente. A maior clareza possível sobre os motivos para esses acessos de asma, naquele momento, me veio através da leitura de um livro sobre distúrbios idiopáticos do dr. Freeman. Ele resumiu as imagens oníricas mais frequentes nos sonhos de pessoas idiopaticamente adoecidas, i.e., pessoas com enxaqueca, asma, epilepsia, etc. São sonhos que costumam ter como elementos um homem lutando contra si mesmo, ou com alguma fera, ou um cachorro, ou uma serpente ou um gato, ou ainda com seu irmão gêmeo, ou com outro homem. Geralmente, ele está nu enquanto luta, e diante de uma árvore branca morta (que costuma aparecer no fundo da cena), enquanto uma mulher, ou três mulheres, ou nove mulheres, observam essa batalha. Esse é um símbolo padrão que pode ser encontrado nas moedas Cretenses, bem como no frontispício de THE GREEK MYTHS, de Robert Graves.
A árvore branca também está na moeda cretense?
A árvore está lá também. Mas é uma árvore viva, não é branca. Uma árvore branca é mais imediatamente uma árvore morta. Existem outros tipos de árvores brancas (e pode existir uma árvore prateada), mas se é uma árvore branca, então para a mente é como uma árvore morta. A questão que qualquer árvore branca impele é, “Teria ela a potencialidade de uma nova vida?”, ou seja, “Seria branca pelo fato de ser sem vida, ou é branca porque é esta a sua condição enquanto árvore?”. Eu comecei a ter ataques de asma diários e estava intensamente preocupado se iria realmente vir a morrer. (Por essa época, já tínhamos uma segundo bebê, uma menina. Todo o material filmado durante seu nascimento iria ser usado em DOG STAR MAN). Eu estava novamente encarando a morte enquanto conceito; não observava a morte como uma decadência da matéria, não lidava com a dor pela morte de um ser amado por mim, mas ocupava-me com o conceito da morte como algo que o homem projeta ao futuro, perguntando-se, “Como deve ser a morte?”. E a limitação de somente encontrarmos imagens para um conceito acerca da morte pela própria vida é uma tortura terrível, tal como no TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS de Wittgenstein, 6.4311: “A morte não é um evento da vida. Não se pode viver a experiência da morte. Se por eternidade entendermos não uma duração temporal eterna, mas uma atemporalidade [timelessness], então viverá eternamente aquele que viver no momento presente. Nossa vida é infinita [endless], da mesma forma como nosso campo visual é sem limite.” No livro de Freeman, existe uma pintura feita por uma paciente, uma mulher, daquilo que ela viu num sonho enquanto tinha ataques asmáticos. A árvore branca está ali, a mulher, o homem lutando contra uma fera. A luta pode representar São Jorge matando o dragão; é qualquer homem lidando com sua fera interior, ou ele pode considerar que sua fera está em seu irmão gêmeo, seu Doppelgänger, ou seu antípoda, como Hercules em relação a Dionysus. Eu tive de lidar com esse material enquanto Jane teve de lidar com meus ataques de asma e a postulação de meu desejo-de-morte novamente no centro de nosso casamento, algo que poderia destruir nosso futuro. Precisamente nesse momento, eu parei de trabalhar em DOG STAR MAN, guardei o filme e comecei a editar THE DEAD. E enquanto editava THE DEAD, fui progressivamente saindo da crise na qual eu estava morrendo.
Teria o velho material de 1958 vindo a você em um flash?
Eu sempre o tive à mão para o momento em que a necessidade de trabalhá-lo me seria vital.
Naquele filme, por que você somente usou material filmado em Paris?
Eu só usei material filmado em Paris porque Paris era de uma totalidade de mundo tal que, se eu a permitisse durar tempo o bastante para afetar diretamente a minha vida, teria se tornado uma forma total por si mesma.
Por acaso seu desejo de morte poderia ter surgido da confusão política no Brussels Experimental Film Exposition, onde você não recebeu o dinheiro que esperava receber?
Eu diria que aquilo pode tê-lo influenciado, mas não foi sua causa. Dinheiro é sempre um meio para nós pelo qual podemos compreender a forma que desejamos. É muito importante para nós. É como em um conto de fadas, onde você tem sempre de conquistar o tesouro para conseguir a princesa e viver feliz para sempre. Quero dizer com isso que o herói precisa matar a fera para conquistar o tesouro, e então resgatar a princesa para seguir até seu castelo na montanha de cristal e viver (ponto de interrogação!) feliz para sempre, etc. Essa é a forma; o dinheiro é sempre parte da equação. Eu o tomo por uma equação tão forte em nossa consciência que onde quer que o dinheiro surja como um problema, o que sempre acontece na vida de um artista, ele precisa ser dinamicamente retorcido por um E = mc² estético.
Você editou THE DEAD nesse momento?
Sim. THE DEAD foi o filme mais nitidamente distante de qualquer relação direta com Jane. Ela teve de se manter fora dele. Ela sempre insistiu em manter-se distante de meus ataques de asma, isto é, ela não iria se tornar minha mãe. Ela deixou isso absolutamente claro, e algumas vezes me foi extremamente doloroso. Mas ela manteve essa integridade, que eu entendi tão pouco na ocasião, e particularmente no meio de um ataque de asma, ela se manteve absolutamente fora de meus desejos-de-morte tão expressos - e mesmo desesperadamente, tentou não lhes dar conhecimento. THE DEAD foi filmado quando eu estava longe de Jane por um mês e meio. Foi editado quando ela estava me evitando na maior parte do dia, para manter-se alheia a toda aquela força destrutiva de asma que estava acontecendo em mim. Eu tive de descobrir, e de perceber com referência a THE DEAD que, de alguma maneira, todas as imagens da morte ou seus conceitos devem ser sempre estruturados em vida. E foi então que soube a razão do por quê ter filmado no mesmo dia, e pelas mesmas necessidades, o material no cemitério de Père Lachaise e o material no rio Sena. Mesmo ali, eu sabia de algum modo que eles seriam utilizados juntos. Mas quão juntos o seriam, só se tornou claro no momento da edição.
E as cenas de Kenneth Anger em um Café?
Eu não sabia na época que as filmagens de Kenneth Anger, enquanto imagem, seriam usadas em THE DEAD. Eu estava perto de esgotar um rolo, e queria tirá-lo da câmera para colocar o filme colorido, para as cenas do rio Sena. Eu disse, “Bem, eu não tenho nenhuma imagem sua, still ou o que for”. Nós estávamos sentados em um Café; eu capturei a imagem de Kenneth ali. Foi só quando fui revisitar esse material que realizei que AQUELE nível específico, dentro do que eu pretendia em THE DEAD, estava no modo como eu tinha visto Kenneth e em tudo o que o envolvia naquele momento. Porque eu o vi como um conceito. Visualizei ele como um dos mortos, o que me trouxe grande preocupação e afeto e amor por ele naquele momento. Ele estava há anos sem trabalhar, estava tolhido por conceitos do séc. XIX sem nenhuma chance de se libertar deles; era quase um homem destruído, mas ainda assim continuava vivendo... e foi isso que me pareceu a coisa mais importante. Todo o restante das pessoas em THE DEAD – elas ESTÃO mortas. Elas são os mortos-vivos [walking dead]; ele, todavia, era o vivo-morto [living dead]. Ou seja, ele foi como meu duplo em um certo sentido – meu “stand-in”, poderíamos dizer. Ele foi a imagem que se tornou mais imediatamente disponível para que eu pudesse lançá-lo a mim mesmo como um ultimato: “Você deseja isto?... Você deseja estar preso por todos esses símbolos?... Você deseja estar preso e atravessado por conceitos que estão além e aquém, em todas as direções, de onde você realmente está?” E então minha resposta foi: “Não!”. Eu pude, então, estruturar THE DEAD através de um conceito de futuro como aquilo através do qual nós não podemos viver. Viver através desse conceito não é o mesmo que concebê-lo. É comparável a como nós não podemos viver através da morte. De modo que a questão então deve ser lançada a tudo o que se projeta para a vida: como os mortos-vivos se tornam o que são; como o que é esculpido DENTRO da pedra se torna o conceito daquilo que é esculpido FORA da pedra; como os viventes podem se relacionar com aquilo, e como mesmo as árvores, formadas de tal maneira e ordenadas e estruturadas de tal modo, se tornam vivas-mortas [living dead] e como os mortos-vivos são pessoas tão mortas de si a si que não podemos nem mesmo usar a palavra “vivas” na mesma sentença em que delas falamos... mas, nada disso diz respeito ao Kenneth. Ele estava brilhante, em toda aquela beleza e vontade de viver; e contudo ele estava preso e atravessado pelas formas que ele tinha projetado para além dele mesmo – por tudo o que ele queria realizar (como o filme MALDOROR) e não conseguia encontrar meios para fazê-lo. Isso era intensamente doloroso para mim. Eu daria tudo para encontrar um modo para ele realizar o que ele queria, não somente porque queria ver MALDOROR feito por Kenneth Anger, que talvez nem me fosse o maior motivo... eu queria deixar Kenneth ter sua maneira de realizá-lo, de modo que ele poderia se libertar e prosseguir. Ele estava totalmente destroçado. Mas agora há uma nova esperança para Kenneth. Ele conseguiu escapar da armadilha que MALDOROR lhe montou e ele ESTÁ de volta aos Estados Unidos, com um novo filme em progresso. A Europa, pesando-nos com tanto de passado, era THE DEAD. Eu sempre fui um turista ali; eu não poderia morar lá. O cemitério poderia representar tudo o que para mim era a Europa, por todo o meu interesse pela arte do passado, por todo meu envolvimento com os símbolos. THE DEAD se tornou o primeiro trabalho meu no qual certas coisas que poderiam muito facilmente ser tomadas como símbolos foram fotografadas de modo a destruir todo o seu potencial simbólico. Em suma, a ação de realizar de THE DEAD me manteve vivo.
Como você seguiu para a edição de PRELUDE; e o que quis dizer quando falou de um aspecto de sonho freudiano para o filme?
Desde o princípio eu tinha alguma ideia (mas não sei exatamente de onde ela veio) de que o trabalho teria quatro partes e um prelúdio. Quando Jane e eu atravessamos todo o processo de conjugar e reunir aquela totalidade de mundo, sobrevivendo à sensação de morte que estava disposta pela própria coleção desse material, o passo seguinte foi tentar elaborar um sentido de forma para o filme. No início, eu só conseguia pensar em um trabalho de larga escala a partir de termos simbólicos. Por exemplo, pensei que se esse homem escalar a montanha no final do inverno, e desde a noite até o alvorecer, através da primavera, na aurora, ele prosseguiria até o solstício de verão e meio-dia, instante em que ele lenhará a árvore... mas aí, eu não sei o que viria: sei que teríamos um outono* [a Fall] – e então um retorno para, em algum lugar, o solstício de inverno. Mas minha ideia do que seria esse outono/queda [that fall] ainda me permanece nebulosa. Eu pensei em DOG STAR MAN como estruturado sazonalmente de tal maneira. Mas também, ainda que abrangesse um ano, e a história do homem (digo, em termos de materialidade de imagem - por exemplo, com as árvores se tornando arquitetura para toda a história dos monumentos religiosos, ou com a violência como um desenvolvimento das guerras), me pareceu que tudo isso deveria estar contido dentro de um único dia. Por isso, pensei naquilo que qualquer forma-estrutura para os dias sugere. E eu tinha certeza de uma coisa, por conta de meus próprios sonhos, que era o fato de que quem sonha desperta estruturas no dia seguinte. O material onírico é reunido no dia anterior, e portanto é uma reunião do material de todos os dias prévios àquele; ergo, ele contém a estrutura de todas as histórias, de toda a Humanidade. Eu não me sentia envolvido diretamente com os conceitos freudianos, e tampouco com psicologia, desde que tinha me afastado da ideia de drama como um dos pilares estruturantes de meu trabalho. Subitamente, drama, e psicodrama, portanto, se tornaram pertinentes para mim por um outro viés. O primeiro passo para me dar conta disso foi o fato de que comecei a reler Freud intensivamente, para aprender sobre as estruturas fundantes da experiência onírica. Eu tinha a percepção de que eu poderia criar um prelúdio, antes de criar qualquer parte restante do trabalho. Geralmente, ao longo da história da arte, os prelúdios são compostos de partes e pedaços de um trabalho subsequente. Agora eu queria compor o prelúdio antes, ao invés de por último (como é usual), para que então o restante do trabalho surgisse a partir daquele prelúdio. Eu tinha somente uma vaga noção das quatro partes porvir. Ao mesmo tempo, sabia que o que acontecesse dentro desse prelúdio poderia determinar tudo o que viesse depois, e nesse sentido, eu queria que o que surgisse fosse desde o início tão real quanto a própria vida acontecendo. Eu queria PRELUDE como um sonho criado pelo trabalho que o sucede, ao invés do Surrealismo, que quer sua inspiração a partir do sonho; eu me coloquei próximo de um uso prático do material onírico, em termos de aprendizado e estudo, por um certo tempo antes de iniciar a edição. Nessa época, deixei as preocupações estritas sobre os mitos o mais longe possível de meu processo de estudo.
*nota do tradutor: "...mas sei que teríamos um outono": nesse momento, Brakhage realiza uma homonímia entre Fall como outono e fall enquanto queda, figurando a derrubada da árvore e o retorno do lenhador.
Mas há muito sobre mito no filme, não há?
Naturalmente, o mito é um assunto forte nele. Mas isso não era a minha preocupação principal naquele momento. O mito se tornou importante depois, para uma percepção da estrutura como um todo. Eu desejei muito, por um tempo, realizar um filme chamado FREUDFILM no qual eu ilustraria o processo de elaboração onírica, e demonstraria como que um sonho se desenvolve através das partes que nós não lembramos para aquelas às quais lembramos. Em PRELUDE, eu queria realizar um filme que pudesse deslizar nessas transformações, de imagens inaceitáveis para imagens aceitáveis. Eu queria que esse fosse o fator editorial determinante na mesa de cortes, e foi mesmo como aconteceu. Eu tinha de começar com um material que me era incompreensível e progredir regressivamente. Por um longo período dessa edição, eu estava conjugando preocupações surrealistas com, digamos, a percepção da forma em John Cage, através de suas operações aleatórias [chance operations]. E então eu revisitaria de novo e de novo esse material até reestruturá-lo, até que, finalmente, acabei conseguindo uma tira de filme com a duração de PRELUDE tal qual você conhece. As pinturas manuais estiveram sempre em relação direta com a espécie particular de “visão de olhos fechados” [closed eye-vision] que experimentamos apenas em sonho. O tipo mais corriqueiro dessa “visão de olhos fechados” que temos é quando fechamos os olhos na luz do dia e observamos o movimento das formas e as formas pelo filtro vermelho da pálpebra. Mas uma vez que PRELUDE foi baseado em uma visão onírica, tal como eu a podia lembrar, ele tinha de conter uma “visão de olhos fechados”. A pintura era a melhor aproximação possível a essa experiência; por isso, pintei, lançando padrões rítmicos e controlando-os de variados modos. Formas começaram a emergir desse tipo de ação e reação nervo-ocular. O próximo passo, quando eu já tinha uma tira de filme, era começar com uma segunda, a tira de sobreposição. Pode-se ter três, quatro ou até mais tiras da duração total de um filme e sobrepor as imagens umas às outras, ou do modo que se desejar. Eu peguei uma tira que estava mais fundamentalmente determinada pelo acaso e pelas operações surrealistas e comecei a editar uma segunda tira sobre ela. Desse momento em diante, tudo o que realizei ali foi hiperconsciente [hyperconscious]. Eu retornava e alterava as cenas para transformar a forma na tira número na medida em que tal necessidade surgisse na tira número dois. A segunda tira estava sempre desenvolvendo-se a partir do que estava primeira tira para estruturá-la e transformá-la em algo que seria comparável à lembrança de nossos sonhos quando acordamos pela manhã. De um lado, eu tinha aquela massa incompreensível de material surgindo de minhas preocupações com operações aleatórias e surrealistas, no que eu chamei de meu rolo “caótico” [“chaos” roll]; mas do outro, eu tinha um “rolo estruturado” [structured roll] que representava o sonho transformado e tornado acessível à memória consciente pela manhã. Quando finalmente atravessei essa fase, já não restavam mais operações aleatórias no filme.
Como Jane esteve com você nesse processo?
Jane teve pouca ou nenhuma relação com o desenvolvimento do rolo “caótico”. Ele foi editado muito rapidamente; eu estava tirando as cenas e dividindo-as mais rapidamente do que poderia sequer pensar a respeito. Jane estava sempre observando elas. Em alguns momentos, eu alteraria a forma por sentir alguma emanação provindo dela enquanto ela estava no recinto. Eu sentiria, "isso não está certo, não está funcionando". Ninguém trabalha mais rápido do que os sentimentos, você sabe. Em outros momentos, ela se sentaria e nós conversaríamos juntos por um longo tempo; e então eu voltaria e rasgaria seções inteiras do filme. Houve momentos também em que nos sentiríamos uma clareza imediata sobre a qualidade de uma série de recortes. E noutras ocasiões, depois de ter terminado uma seção, nós a assistiríamos juntos, e então sentávamos, conversávamos, tomávamos café, ensaiávamos uma peça de Gertrude Stein ou brincávamos com as crianças, ou o que fosse, observando qual seria a espécie de clareza que viria a partir disso.
Quantas crianças vocês tinham na época?
Nessa época tínhamos duas. A Crystal nasceu no meio da filmagem do material para DOG STAR MAN.
Você filmou o material para PRELUDE separadamente?
Não. Eu tirei material de toda e qualquer parte que me parecesse a mais caótica possível. Duas coisas determinaram minhas escolhas do material que se tornou PRELUDE. Uma foi o quanto aquele material era incompreensível para mim. Isso seria comparável à declaração de Buñuel sobre ANDALUSIAN DOG [O cão andaluz] na qual ele disse que ele e Dalí não podiam compreender o que quer que fosse quando estavam filmando aquelas coisas do filme. Eu estava no território do surrealismo. A outra razão para utilizar um material específico foi ter os símbolos correlativamente relevantes à moeda de Creta como uma imagem da criação da mitologia. Tradicionalmente, aquela imagem vem a nós através de Adão e Eva – você sabe; o homem, a árvore, a serpente, tudo meio distorcido e alterado por conta da tendência hebraica em elaborar esse patriarcado tão maldito. Mas se você consultar THE WHITE GODDESS, de Graves, e ler a versão original ao invés da versão King James pasteurizada, você consegue uma imagem muito mais clara. A maior parte das culturas tinham um mito da criação similar, que contém esses elementos de uma forma ou outra. Esses elementos estão relacionados ao sonho daqueles que sofrem por distúrbios idiopáticos. Coletar esses símbolos foi um problema; tê-los de um modo nítido e em um padrão eficiente foi outro. Esses foram os dois fatores que determinaram o que eu selecionava e me dispunha a trabalhar sobre.
O próximo filme foi THIGH LINE LYRE TRIANGULAR, se eu não estiver errado?
Esse foi o próximo filme fotografado, mas FILMS BY STAN BRAKHAGE foi o próximo a ser concluído. Tão rápido quanto PRELUDE foi terminado, Neowyn nasceu e eu preparei o material para THIGH LINE LYRE TRIANGULAR.
No que THIGH LINE LYRE TRIANGULAR foi diferente, quando finalmente você o editou, de WINDOW WATER BABY MOVING?
A principal diferença é a pintura sobre filme em THIGH LINE LYRE TRIANGULAR. Somente quando estou em crise eu vejo a cena tal como fui treinado para visualizá-la (ou seja, com a perspectiva Renascentista, a lógica tridimensional – as cores como fui treinado a convocá-las como cor, e assim por diante), e os padrões que se movem diretamente para fora, desde o interior da mente através dos nervos ópticos. Em outras palavras, em uma crise intensiva eu posso ver de dentro para fora e de fora para dentro.
Como se fosse uma exposição dupla?
Eu vejo padrões se movendo, e são os mesmos padrões que vejo quando fecho meus olhos. Mas também posso ver o mesmo tipo de cena (ao mesmo tempo) que vejo quando meus olhos estão abertos.
Você quer dizer que pode ver pontos coloridos diante de seus olhos?
Sim – pontos diante de meus olhos, por assim dizer... e é muito intenso, perturbador, mas uma experiência feliz. Eu os vejo sempre que uma das crianças nasce. Repare que eu usei a palavra “crise” [crisis]. Eu não penso que a crise seja uma coisa ruim. Em um momento extremamente delicado eu posso ver de dentro para fora e de fora para dentro. Mas nada disso estava em WINDOW WATER BABY MOVING; e eu queria um filme de parto que expressasse tudo o que eu conseguia ver naquele momento.
E você acrescentou imagens de animais também?
Isso foi porque naqueles momentos eu teria flashes do que poderia chamar de “filmes cerebrais” [brain movies]. Eu estou usando o termo de Michael McClure aqui; ele disse, “Quando você consegue uma sólida estrutura de uma imagem que você sabe que não existe, mas que está sendo rememorada tão intensivamente que você pode literalmente vê-la em um flash, isso é um ‘filme cerebral’.” A maioria das pessoas só os consegue ver com os olhos fechados. Eles fecham os olhos e veem, em um flash, algo de sua infância, ou se lembram de alguma pessoa, ou de alguma coisa; e isso deveria estar, também, em uma experiência fílmica. O que eu estava vendo no nascimento de Neowyn, mais claramente, em termos da lembrança desse processo de “filme cerebral”, eram estruturas simbólicas de natureza animal. Isso me impactou como algo estranho porque eu estava trabalhando por todos os lados, dia e noite, para evitar o simbolismo. Foi como se alguma coisa tivesse se escondido no fundo de minha mente, para lançar sobre mim esses termos simbólicos tão logo eu me encontrasse em uma crise. E curiosamente, esses símbolos animais foram facilmente representados apenas utilizando o material de ANTICIPATION OF THE NIGHT.
Por que você nunca é visto como um pai nesse filme?
Isso é porque eu centralizei a ocasião em meus próprios olhos.
E então desse filme você seguiu para FILMS BY STAN BRAKHAGE. Como foi a participação de Jane nele?
FILMS BY STAN BRAKHAGE surgiu porque algumas pessoas me pediam maior envolvimento de tempos em tempos. Por exemplo, por anos me perguntavam “Por que você não faz um filme caseiro de suas crianças?”. E na verdade, eu estava fazendo vários filmes das crianças, de Jane e de nossa vida, e dos lugares onde moramos. Filmes caseiros, em um sentido muito simples... como gravar alguma coisa. Eu sempre fiz isso, mas nunca tinha editado nenhum desses materiais. As pessoas me perguntavam, “Você não vai fazer um filme com todo esse material?”, e me parecia um desafio; mas eu me preocupava mais em não fazer algo a partir de um engajamento, e que o material de origem ou as filmagens pudessem ser transformadas em um trabalho de arte, se possível. Eu tinha uma câmera, com a qual eu poderia fazer múltiplas sobreposições espontaneamente. Me emprestaram-na por uma semana. Eu também recebi alguns rolos de filme colorido que estiveram sob fogo intenso. A possibilidade daquele filme não gravar qualquer imagem que fosse me deixou livre o suficiente para experimentar e tentar criar uma percepção do mundo cotidiano em que vivemos, e o que ele significava pra mim. Eu queria gravar o nosso lar, e lidar com ele como se viesse da mesma área que impele os filmes de Stan Brakhage, tentando, ao mesmo tempo, fazer com que um deles surgisse no processo.
E Jane foi quem capturou todas as suas cenas?
Sim, nós trabalhamos juntos nisso.
Existem cenas de intercurso nesse filme. Como elas foram realizadas?
Eu estava livre para tentar ser o mais enigmático possível porque na realidade eu não tinha nenhuma esperança de que as imagens funcionariam; por isso coloquei a câmera por cima e de viés à cena. Enquanto eu estava fazendo esse filme, eu pensava que estava ensaiando para um filme porvir, com um rolo de filmes novo. Mas pra minha surpresa, prazer, alegria, as chamas que danificaram o filme lhe impregnaram de um intenso campo azul. Não era um azul filtrado porque as cores puras ainda iriam vir pelo centro dele. Foi uma coisa esquisita que o incêndio proporcionou. Gostaria de saber qual foi a temperatura que produziu isso nesse filme.
Mas retornando ao seu método de captura das cenas.
Eu preparei a câmera, liguei a chave e me joguei para onde Jane estava, na frente das lentes, e eventualmente a câmera filmou o que tinha de filmar. Depois coloquei de viés e acrescentei sobreposições das crianças. Eu estava usando uma Cine Special; eu poderia voltar para o exato local desejado. Eu não queria usar um filme que fosse me requerer muita edição. Eu gostaria que ele estivesse em um nível imediato, como um esboço. E de algum modo o filme acabou se revelando louca e maravilhosamente e incrivelmente maior do que eu esperava. Eu brinco dizendo que é um “filme caseiro avant-garde”, porque eu não acho que é um trabalho importante como PRELUDE ou qualquer uma das partes de DOG STAR MAN, por exemplo. Eu não fiquei realmente satisfeito com o que consegui ali, mas certamente acabou sendo mais do que eu esperava.
E então veio DOG STAR MAN: PART I. Você vai comentar como Jane trabalhou com você nele?
Na edição desse filme, trabalhamos juntos na maior capacidade possível entre nós até então. Desde o momento em que comecei a trabalhar nele, eu me dizia “Eu acho que isso vai ser algo como um Teatro Nōgaku [Noh Drama] em câmera lenta.” Eu não entendi o motivo de ter dito Teatro Nō, porque eu nunca estive envolvido com algo do tipo. Eu nunca estudei nenhuma forma de Teatro Nō profundamente, exceto o que me chegou através de Ezra Pound. E como descobri depois, era justamente o que instigava a ele: o que Ezra Pound obtivera através do Teatro Nō era a estrutura de seu conceito de Imagismo e depois de Vorticismo, quando ele acrescentou seus comentários ao livro de Gaudier-Brzeska. Esse era o sentido literal do que me inspirava como a forma total para a PART I. No entanto, eu tinha de descondicionar minha mente. Em primeiro lugar, eu tinha de deixar espaço para Jane vir e se sentar comigo, e possibilitar a ela a visão de cada estágio do processo de edição de um modo que me parecesse emocionalmente aberto para qualquer coisa que ela pudesse dizer e fazer. E eu tinha de condicionar minha mente em alguma área que pudesse libertar-me no restante para a extensão do amor; meu truque para consegui-lo foi questionar-me se eu poderia fazer a forma crescer com mais força através de operações aleatórias [chance operations] ou através de decisões conscientes – pois não era nada mais sério do que isso. Eu forcei minha adesão às decisões conscientes, jamais permitindo que um pedaço de filme migrasse para um cálculo de pura chance, e jamais deixando que uma decisão consciente ficasse mais fraca do que uma operação aleatória. Desejava também que a PART I tivesse um ritmo oposto ao de PRELUDE. Eu queria que tudo isso fosse devagar, pensado, extenso à maior tensão possível dentro dos limites daquele material. E eu insisti para mim mesmo que o motivo pelo qual fiz cada um dos cortes de modo tão enigmático, tinha um fundo consciente. Um corte tinha de ser feito simplesmente porque era a única coisa que funcionava visualmente. Em alguns momentos eu levaria uma semana para fazer dez cortes permanentes. Eu iria lentamente, tortuosamente e laboriosamente tentar isso ou tentar aquilo, parti-los e tentar algo diverso. Noutros instantes eu iria deglutir todo o processo da tomada anterior rasgando um pedaço de filme depois de outro que eu cortara, para então ter de iniciar com as tomadas antigas, etc. Depois de obter um certo direcionamento ou caminho a partir de uma série de cortes, Jane e eu olharíamos juntos para o trabalho, e então conversaríamos profundamente sobre o filme em muitos níveis.
Você estava trabalhando com um workprint?
Não, era o original. Eu sempre trabalho sobre o original. Eu não posso bancar um workprint; portanto, estou acostumado a trabalhar nessas condições. Jane e eu conversávamos por horas sobre dez cortes que seguiriam juntos. Era como se estivéssemos criando um caminho que poderia conter as inquietações mais profundas de nós dois. Eu testaria pelas vias que me pareceriam perfeitamente eficientes segundo minha sensibilidade; e então os cortes funcionariam desse modo profundamente enigmático, transportando inquietações metafísicas. Mas isso não corresponderia à visão dela. Em certos momentos, eu me sentiria influenciado em demasia pelo que ela me dizia; e eu delinearia um caminho pelo qual ela pudesse se sentir confortável, mas que no entanto não comportaria minhas inclinações. Nós não estávamos fazendo concessões, mas antes estávamos tentando encontrar a única via correta que poderia comportar nossa concepção total do que seria uma completa abertura para algo novo. Aquele lento, laborioso e tortuoso processo foi o motivo pelo qual nós levamos um ano e meio para terminar de editar a PART I. Enquanto isso, à qualquer intrusão da mente, eu tentava de alguma forma associá-la à obra de John Cage. John Cage foi maravilhosamente utilizado na produção deste filme, no sentido em que a qualquer momento eu poderia como que convocá-lo e agarrar me a ele como a um espantalho para a possibilidade das operações aleatórias contraporem-se ao domínio da mente.
Seriam os “silêncios” no filme o Silêncio de um John-Cageísmo?
Não. Eu não diria que eles tem alguma relevância ali; pois os “silêncios” visuais significavam pra mim aquilo pelo qual algo se punha em processo de vir a ser... perceba, eu realmente amo a música de John Cage, mesmo tendo usado apenas a sua estética como um apoio para segurar minha mente. Eu amo os momentos em sua música, mas ainda mais particularmente a de Morton Feldman, onde se tem o som acontecendo e então um silêncio longo o bastante, justamente para sustentar aquele som antes do provento de um novo som. Mas os silêncios visuais, ou lapsos, em PART I foram mais dirigidos por pensamentos sobre a emergência das imagens através de antinomias, p. ex., brancos e pretos. E meus pensamentos foram dirigidos por um ímpeto pela destruição da dicotomia de pretos e brancos como extremos. Minha tendência foi formatar todo o trabalho de um modo tal que não houvesse distinções entre essas antinomias. Em primeiro lugar, eu esperava não precisar dizer “meu próprio cachorro”. No instante em que se utiliza um “próprio”, “cachorro” se torna propriedade; o mesmo diz respeito às “minhas próprias crianças” ou qualquer coisa do tipo. Eles são minhas para cuidar no momento, apenas. Então, tinha de me livrar dessas coisas.
Deixe-me perguntar então algo que diz respeito ao seu trabalho como um todo. Você falou sobre o seu cachorro, você falou sobre sua família e assim por diante. Não estariam os críticos justificados em dizer que isso é, ainda que não exatamente narcisista, muito limitado em sua amplitude, em oposição digamos a Eisenstein que posiciona seu drama pessoal em um contexto histórico em IVAN THE TERRIBLE (1944), ou em comparação a Stroheim, ou alguém que trabalhe de modo mais objetivo?
Eu diria que me libertei muito cedo enquanto artista visual ou artista de filmes [film artist], quando me desfiz do drama como minha fonte primária de inspiração. Eu comecei a pressentir que toda história, toda vida, tudo o que eu poderia ter como material para trabalhar sobre, teria de vir de dentro de mim para fora, ao invés de se apresentar como uma forma imposta de fora para dentro. Eu tinha uma noção de que tudo irradiava para fora de mim, e que o quanto mais eu me tornasse mais pessoal ou mais egocêntrico, mais profundamente eu alcançaria e mais intimamente eu poderia tocar aquelas inquietações universais que envolvem todos os homens. O que me parece ter acontecido desde (meu) casamento é que eu não mais pressinto o ego como a fonte privilegiada do que pode ser atingido a nível de um universal. Eu sinto, agora, que existem, concretamente, outros centros onde o amor de uma pessoa por outra se encontra; e que uma visão de maior totalidade emerge dali... Primeiro eu tive de sentir o centro irradiando para fora. Depois, comecei a prestar atenção aos seus raios. Você percebe o que estou dizendo? É a ação de mover-se para fora que permite uma continuidade de ingresso nas grandes questões de todas as coisas. Onde eu tomo a ação mais contundente possível e mais imediata é onde eu me alcanço através do poder de todo amor que tenho pela minha esposa (e ela, em seu amor por mim), e, em algum lugar essas ações se encontram e se entrecruzam, e produzem crianças e filmes e inspiram correspondências com plantas, e pedras, e todas as coisas possíveis de serem vistas, e então um centro novo, composto de ação, é formulado. Acho que a melhor referência que posso oferecer para a definição de alma-em-ação [soul-in-action], mais do que em um centro, está em “Proprioception”, de Olson, em KULCHUR No. 1.
-- P. Adams Sitney, Denver, 1963
-- tradução realizada entre maio de 2018 e agosto de 2023