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a letra e o sonho

PSYCHOLOGIE ET ESTHÉTIQUE*

Psicologia e estética, por Jacques M. Lacan

* Sob o título Psicologia e estética, publicou-se a resenha abaixo, escrita por Jacques Lacan, na revista Recherches philosophiques 1935, fac. 4, p. 421-431, sobre uma obra de Eugéne Minkowski, Les temps vécu: études phénoménologiques et psychopathologiques, publicada em 1933. 

tradução por Alexandre Marzullo

Obra ambiciosa e ambígua. É como o leitor a qualifica ao fechar o livro. Essa ambiguidade manifesta-se de imediato desde a bipartição da obra, e é revelada mais intimamente pelo duplo sentido de cada uma de suas duas partes: um primeiro “livro” sobre o “aspecto temporal da vida”, onde seu aparato fenomenológico não é suficiente para justificar os postulados metafísicos que ali se afirmam; e outro, sobre a estrutura dos transtornos mentais, especialmente sobre sua estrutura espaço-temporal, cujas análises, preciosas para a clínica, extraem sua precisão da coerção exercida no observador por um objeto considerado, inicialmente, mediante sua introspecção [méditation] espiritual.

São contradições íntimas que equivalem a um fracasso, não fosse a alta qualidade da obra a nos assegurar que tal fracasso, singular, é inerente à sua própria ambição –  e diríamos até que está vinculado à fenomenologia dessa paixão, em sua estrutura carregada de enigmas para nós. Tendo-a revelada, não deveríamos então interrogar pela fórmula de suas autênticas confidências, pelas quais a obra nos trai a personalidade de seu autor? Recolhemos, dentre essas, a seguinte colocação a respeito da publicação mais recente de Mignard (p. 143), “d’uma síntese entre sua vida científica e sua vida espiritual – síntese tão rara em nossos dias, onde adquirimos o hábito de erguer uma barreira infranqueável entre a pretensa objetividade da ciência e os anseios espirituais de nossa alma.”

 

Desejamos sustentar nossa crítica reivindicando, para ela, o direito de restituição da barreira evocada acima, que certamente não parece infranqueável para nós; antes, representa-se como o signo próprio de uma nova Aliança entre o homem e a realidade. A seguir, examinaremos o triplo conteúdo da obra: objetividade científica, análise fenomenológica, testemunho pessoal. O movimento próprio de nossa análise delineará sua síntese, se ela existir.

A contribuição científica perpassa as análises sobre patologias mentais. É uma área onde a objetividade ainda é imperfeita, e encontraremos aqui aportes preciosos para o seu progresso: ainda mais pelo fato de que, no estado atual da produção psiquiátrica na França, um trabalho como esse é excepcional. O conjunto das comunicações realizadas entre as sociedades savantes oficiais¹ não oferece nada a quem quer que seja, e em especial àqueles cuja profissão constrangeu, por anos já numerosos, a informações por si mesmas desesperantes, na imagem mais miserável das estagnações intelectuais.

É considerada uma atividade científica válida a simples sobreposição, em um “caso”, entre um fato de observação psicopatológica e um sintoma geralmente somático, passível de ser classificado à categoria dos sinais orgânicos. De maneira que a importância exata dessa obra é perfeitamente justificada, ainda mais quando se constata com que espécie de observações tem-se contentado aí. A inanidade está garantida pela terminologia que satisfaz os observadores em seus relatórios, e que deriva inteiramente dessa psicologia das faculdades a qual, fixa em seu academicismo cousiniano [cousinien; relativo a Vitor Cousin (1792 – 1867) (n.t.)], não se viu reduzida pelo atomismo associacionista² em nenhuma de suas abstrações eternamente escolásticas: daí a sua verborragia sobre a imagem, a sensação, as alucinações; sobre o julgamento, a interpretação, a inteligência, etc.; e sobre a afetividade, enfim, última a chegar, uma refeição a la Molière [la tarte à la crème] – a afetividade é a fórmula vazia do momento para a psiquiatria avançada, que percebeu nela um termo mais conveniente a um certo número de escamotagens. No que tange aos ditos sintomas orgânicos, trata-se daqueles que, na prática médica atual, nos parecem dotados de um significado em tudo relativo ao conjunto das variantes semiológicas, o que significa que raramente são patognomônicos [pathognomoniques]; o mais frequente é que sua probabilidade dependa de graus variados. Mas há para certa psiquiatria um valor tabu tal, que faz com que cada simples descoberta se torne uma conquista doutrinária; cada aparente descoberta é considerada como um passo realizado na direção de uma “redução da psiquiatria às categorias da medicina geral.” Como resultado dessas atividades ritualizadas, o método – a saber, este aparato mental sem o qual o fato, mesmo presente, pode ser desapercebido em sua realidade – ainda estaria na psiquiatria naquele ponto meritório mas ultrapassável, entesourado pelos Falret, pelos Moreau de Tours, pelos Delasiauve, esses que o levaram até lá – não fosse o trabalho de raros pesquisadores, tais como um Pierre Janet; esses, se encontram em frequente tensão com a implícita filosofia que paralisa a psicologia médica, mas conseguem superá-la ao desvencilharem-se de seus termos. Razões pelas quais a formação filosófica do sr. Minkowski tem a função de situar o papel, o tempo e os frutos anteriores em sua própria biografia, ajudando-o enormemente a perceber as reais características dos fatos oferecidos a ele, no âmbito de sua experiência clínica cotidiana.

A novidade metódica entrevista pelo dr. Minkowski é sua referência a um ponto de vista estrutural – ponto de vista um tanto fronteiriço, parece-nos, às concepções dos psiquiatras franceses, ainda muito fiéis em sua intenção de corresponderem à psicologia das faculdades. Os aspectos da estrutura revelam-se ao observador em sua coerência formal, mostrando a consciência mórbida em seus diferentes tipos, e unificando-a em cada uma de suas feições originais às formas que se prestam à identificação do eu, da personalidade, do objeto – ou seja, da voluntariedade aos choques de realidade –, e das asserções lógicas, causais, espaciais e temporais. Não se trata aqui de registrar as declarações do sujeito, coisa que já sabemos há muito tempo (e aliás, talvez seja um dos pontos admitidos pela psicologia psiquiátrica recente) que só pode, pela própria natureza da linguagem, estar em inadequação à experiência vivida que o sujeito busca expressar. Ao contrário, é apesar dessa linguagem que se “penetra” a realidade de tal experiência, apreendendo-se do comportamento do paciente o momento onde se impõe a intuição decisiva de uma certeza ou de uma certa ambivalência suspensiva da ação, e em resposta a nosso consentimento, a forma sobre a qual se afirma em seu momento.

Projeta-se assim o tipo de importância que pode ter o ‘modo vivido’ da perspectiva temporal para aquela determinação formal.

Um belo exemplo do valor analítico de um método como esse é oferecido pelo sr. Minkowski em seu memorável estudo d’um “caso de ciúme patológico sob uma base d’automatismo mental”, reproduzido aqui nos Annales médico-psychologiques de 1929. Não há demonstração mais engenhosa e convincente do papel representado por seu modelo formal no que se refere ao “transtorno generativo” (‘trouble générateur’ usualmente chamado pelos franceses de ‘sintoma de transitivismo’ [symptôme du transitivisme]), tanto por seus conteúdos morbidamente passionais (sentimentos de amor e sobretudo de ciúmes), quanto por sua manifesta desintegração da realidade, tanto interior quanto objetal.

É uma observação brilhante, que nos traz a convicção de que não nos será compreensível o significado verdadeiro de uma paixão mórbida enquanto essa for insuficientemente sinalizada sob a mera rubrica de uma experiência comum (ciúme), ou seja, sem que penetremos em sua organização estrutural.

No entanto, é de se lamentar que o sr. Minkowski tenha tanto esmero em excluir das explicações de um tal caso, por julgá-las artificiais, qualquer compreensão genética acerca da história afetiva do sujeito. Mesmo o mais favorável de seus leitores não poderá deixar de impressionar-se, aqui, com os relatos de conformidade significativa entre as lembranças traumáticas da infância (traumatismo libidinal condizente ao estágio anal e fixação afetiva à sua irmã),  trauma reativado na adolescência (o homem que ela ama se casa com uma amiga dela), e os modos de identificação afetiva na forma de falsos reconhecimentos e transitivismo, que a fazem sentir-se tão despersonalizada em relação às mulheres de quem sente ciúmes que passa a acreditar na existência de relações homossexuais entre seu marido e suas amantes; ainda mais impressionante é o fato de que o resgate das lembranças infantis à consciência coincida com uma relativa sedação de seus transtornos.

Além disso, por força de sua posição abertamente hostil à psicanálise, o sr. Minkowski pretende inaugurar na pesquisa psiquiátrica contemporânea um novo dualismo teórico, que renovaria a oposição já periclitante entre organicismo e psicogênese, mas que se oporia agora, por um lado, à gênese – que ele denomina como “ideo-afetiva” [idéo-affective], e que é a mesma dos complexos que definem a psicanálise – e de outra parte, à noção de subducção estrutural [subduction structurale], que ele considera a tal ponto autônoma que chega a falar em fenômenos de compensação fenomenológica.

Uma oposição tão exclusiva só pode se revelar esterilizante.

Em trabalho recente,³ nós mesmos tentamos demonstrar a razão comum, no complexo típico do conflito objetal (a posição “triangular” do objeto entre o tu e o si mesmo), para a forma e o conteúdo do que chamamos de conhecimento paranoico.

Também não acreditamos que em sua essência o destino do homem em “manusear sólidos” determinará a estrutura substancialista de sua inteligência. Pois essa estrutura nos aparece mais bem vinculada a uma dialética afetiva, que a conduz desde uma assimilação egocêntrica de seu meio até o sacrifício de si mesmo à pessoa do outro. O valor determinante das relações afetivas, sob a estrutura mental do objeto, será portanto bastante profundo. A elucidação de suas relações parece-nos ser de foro axial para uma justa apreciação das características do tempo vivido em tipos estruturalmente mórbidos. Uma consideração meramente isolada de suas características não nos permite, supõe-se, notá-las em seu conjunto e tampouco diferenciá-las. Daí a função um tanto díspar das diversas perturbações da intuição do tempo nas categorias nosográficas, quando essas são abordadas em sua obra: ora se apresentam como evidentes à consciência, e descritas como sintoma subjetivo para o paciente em sofrimento; ora, ao contrário, deduzem-se como estruturais ao transtorno que as expressa de forma pronunciadamente indireta (as melancolias).

O que nos parece muito fundamental, e sem nenhuma dúvida destinado a acrescer à clínica das discriminações essenciais, é a subducção do tempo vivido [subduction du temps vécu] sobre os estados depressivos: podemos considerá-los, daqui em diante, como estados enriquecidos por um certo número de tipos estruturais (pp. 169-182; 286-304).

Mas não podemos, de outra parte, deixar de reconhecer que o sr. Minkowski fez demonstrar a fecundidade analítica da noção, sobretudo estrutural, apresentada por Clérambault sob o nome de “automatismo mental.” As belas obras desse mestre excedem em muito o âmbito da mera demonstração de uma verdade “organicista”, a qual ele mesmo parecia interessado em reduzir, apesar do apego que alguns de seus alunos ainda demonstram a ela.

Em seu esforço pelo ciência – sempre obra comum – o sr. Minkowski faz questão de render homenagem a cada um de seus pares que, a seus olhos, tenham oferecido contribuições à exploração do tempo vivido nas psicopatias. Recebemos, assim, palavras bastante eloquentes sobre os trabalhos da srta. Minkowska, do sr. Frantz Fischer, dos srs. Straus e Gebsattel, do sr. de Greef e do sr. Courbon. Talvez o conjunto perca em valor demonstrativo o que assim ganha em riqueza, enfatizando a ideia de que os transtornos do tempo vivido estão nas estruturas mentais mórbidas em um caráter por demais acessório para serem utilizados de um modo que não seja secundário em uma classificação natural de suas estruturas (cf. o curto capítulo intitulado: algumas sugestões sobre a excitação maníaca – e cotejá-lo com o grande estudo de Binswanger sobre o Ideenflucht para os Archives Suisses).

Como resultado, a atenção do psiquiatra, no contato clínico com seus pacientes, terá de ser solicitada a aprofundar a natureza e as variedades desses transtornos da intuição temporal. Adiante, ao integrar seu aspecto à uma análise totalitária das estruturas, [o sr. Minkowski] mostrará seu verdadeiro lugar dentre a gama das formas de subducção mental; o estudo dessas há de ser um fundamento para a antropologia moderna.

Mas essa antropologia, de resto, não deverá ser elaborada mediante uma ciência positiva da personalidade. Tanto as fases evolutivas típicas de seu ímpeto quanto sua estrutura noética e intencionalidade moral devem nos ser dadas – desejamos sublinhar de próprio punho e com nossa voz – por uma fenomenologia. E de fato, o sr. Minkowski sucede bem em buscar fundamentar por uma análise fenomenológica do tempo vivido as categorias de sua investigação estrutural.

O termo ‘fenomenologia’, nascido na Alemanha, ao menos no sentido técnico sob o qual, agora, ocupa seu lugar na história da filosofia, cobre – depois de libertado das condições rigorosas da Aufhebung husserliana – um bom número de especulações “compreensivas”.

Tanto mais que, depois de ter sido admitido na França à categoria de uma moeda sem garantia cambial a qual, no entanto, vem a constituir – ao menos, enquanto estiver circulante – cada termo do vocabulário filosófico, o uso desse termo foi impregnado d’uma extrema imprecisão. É verdade que a obra do sr. Minkowski tende a fixar o seu uso, mas apenas sob o modo prático do intuicionismo bergsoniano.⁴ Entende-se, com isso, que não se trata d’um conformismo doutrinal em si, mas de uma postura informada, poderíamos dizer, por quase um clichê irracionalista, com suas fórmulas que nos parecem não só um tanto fora de uso como também bastante escolares em suas incessantes antinomias de raciocínio⁵ [antinomies raisonnantes] através das quais se alimenta (cf. o capítulo sobre sucessão, etc.).

A consequência disso é uma compreensão muito particular da ‘duração vivida’⁶, e por resultado, temos uma dialética d’uma fragilidade extraordinária, cuja exigência crucial parece ser, a cada antítese da experiência vivida, a discordância e a assimetria discursivas. Mas essas, por sua vez, nos conduzem a sínteses inapreensíveis do élan vital, direção única e inaugural do devir; do élan pessoal, análogo à obra realizada; e enfim da ação ética, sua finalidade última, cuja essência permanece, todavia, em tudo inerente à própria estrutura do devir (cf. p. 112).

Tanto assim que o élan, puramente formal e portanto criador de toda realidade vital, é para o sr. Minkowski a forma do futuro vivido. Essa intuição domina toda a estrutura da perspectiva temporal. A restauração da virtualidade espacial revelada pela experiência, sob essa perspectiva, constituirá a totalidade da obra aqui criticada. Ela concorre a uma intrusão fecundante, no devir, de pares ontológicos, “ser um ou muitos”, “ser uma partícula elementar de um todo”, “seguir numa direção”, para que então se possam engendrar princípios sob os quais seu irracionalismo, comprovado de berço, servirá também de estado civil: princípio da continuidade e da sucessão; princípio d’homogeneização; princípio do fraccionamento e da conjunção. A dizer a verdade, a falha de uma tal dedução irracional surge da união do élan vital com o élan pessoal; esta exige, assim nos parece, a intervenção de um elemento intencional concreto, aqui absolutamente desconhecido. A tentativa, sequer disfarçada, de fazer surgir de uma pura intuição existencial tanto o super-ego quanto o inconsciente da psicanálise, “níveis” incontestavelmente ligados ao relativismo social da personalidade, nos parece uma temeridade [gageure]. Parece-nos o produto de uma espécie de autismo filosófico, cuja expressão deve ser tomada, aqui, como um dado em si mesmo fenomenologicamente analisável, tal como podem ser os grandes sistemas da filosofia clássica. A exclusão de todo saber para além da realidade vivida, a gênese formal da primeira certeza empírica na ideia de morte, da primeira lembrança no remorso e da primeira negação na lembrança são em tudo de intuições de prestígio, mas que portam-se melhor como grandes momentos de uma espiritualidade intensa, não como dados imanentes ao tempo em que “nós” vivemos. 

Com isso, estamos aludindo a noções familiares da filosofia do sr. Heidegger, e certamente os elementos dessa filosofia, já respiráveis após o filtro d’uma linguagem abstrusa e da censura internacional, nos municiaram de exigências que se encontram insatisfeitas aqui. O sr. Minkowski, em uma nota da página 16, confessa ignorar o pensamento desse autor, porquanto o seu já teria assumido uma forma decisiva. Podemos lamentar, em razão da situação excepcional em que sua dupla cultura se encontra (pois, como insiste aqui, escrevera seus primeiros trabalhos em alemão), que ele não tenha mediado uma introdução, no pensamento francês, do enorme trabalho de elaboração adquirido nos últimos anos pelo pensamento alemão.

 

Do mesmo modo como um desconhecimento menos sistemático de Freud não teria censurado, do conjunto de suas intuições fundamentais, a resistência, os próprios aspectos primários do ensino heideggeriano o teriam incitado, ainda, a admitir ali o ennui [o tédio], ou quem sabe, a não rejeitá-lo de imediato entre os fenômenos negativos. Mesmo as considerações muito atraentes sobre o esquecimento, concebido como de caráter fundamental para o fenômeno do passado, parecem-nos (mais uma vez) muito sistematicamente opostas aos dados clínicos cuja melhor apreensão nos é oferecida pela psicanálise. Por fim, a ideia de promessa, verdadeiro pivô da personalidade e que deve se apresentar como sua garantia, nos parece aqui ainda um tanto nebulosa, e ao mesmo tempo um tanto absoluta para conotar o élan pessoal apenas pela imprevisibilidade e pela inapreensibilidade irredutível de seu objeto.

Todavia, esses preconceitos nos oferecem, por vezes, análises parciais admiráveis. A concepção original da ‘espera’ como a autêntica antítese da atividade (ao contrário da passividade, “como desejaria a nossa razão”), é engenhosa e coerente em seu sistema. A estrutura fenomenológica do desejo está bem valorada no grau mediato das relações do futuro. E uma obra-prima de penetração nos é oferecida sobre a análise da oração: essa, sem dúvida, é a chave do livro – um livro espiritual, cuja efusão verte-se, por inteiro, em um diálogo que não pode ser expresso para além dos segredos da alma. E que nenhuma inquisição dogmática ouse rastrear seus postulados: às perguntas sobre a natureza do interlocutor, ele responderá como o faz àquelas sobre o sentido da vida, como o faz àquelas sobre o sentido da morte: “Há problemas que exigem ser vividos como tais, sem que sua solução consista em uma fórmula precisa” (p. 103), e: “eu quase teria prazer em dizer: se verdadeiramente não existir nada depois da morte, isso nos parecerá verdadeiro somente enquanto perpetuarmos essa verdade em nós mesmos, mantendo-a zelosamente no íntimo de nosso ser.”

 

Trata-se de uma plena confidência: tais confidências, no entanto, são confissões. Em uma época na qual o espírito humano compraz-se em ver afirmadas as determinações que projeta sem cessar sobre o futuro – não sob a forma aqui criticada de uma previsão, mas sob a forma vivificante de um programa e um plano –  essa elusividade “passional” nos demarca uma atitude definitiva. Essa não poderá ser radicalmente individual, no entanto, e o que é confidencial, no capítulo seguinte, se revelará enfim confessional: o traço radicalmente evanescente da ação ética sobre a trama do devir, a assimilação do mal à obra, remetem-nos aos mistérios da introspecção de um Lutero e de um Kant. Ou será talvez ainda mais longe, onde o autor nos conduz? A alma ultima seu longo hino ao amor, que o olho iluminado “escrutiniza” sem cessar; seu longo apelo ao “mais adiante” pelo qual retornam, a cada página, seus enigmas tão caros: “se soubéssemos o que significa dizer ‘elevar-se acima’!” (p. 87 et passim), e nos oferece assim o élan que anima o livro por inteiro, se afinal pudéssemos apreendê-lo em um único olhar.

 

Não é, com efeito, um dos menores paradoxos de seu longo esforço para 'desespacializar' o tempo⁷, sempre distorcido por sua medição⁸ e que não admite persecução senão através d’uma longa série de metáforas espaciais: implementação, caráter super individual, dimensão em profundidade (p. 12), expansão (p. 76), vazio (p. 78), mais longe (p. 88), raios d’ação (p. 88) e sobretudo horizonte da oração (p. 95 e seguintes). O paradoxo, desconcertante e irritante, se mantém até o capítulo final nos prover enfim sua chave resolutiva, na forma da intuição, a nosso ver, a mais original do livro, ainda que mal esboçada: a intuição de um outro espaço que não o espaço geométrico – a saber, como oposto ao espaço claro, bastião da objetividade, o espaço negro do tatear, da alucinação e da música. Comparemos isso com este desabafo surpreendente (p. 56): “Uma prisão, mesmo que se confunda com o universo, me é intolerável”. É para “noite dos sentidos”, é para a “noite obscura” do místico que acreditamos poder dizer, sem abuso, que estamos sendo guiados.

 

A ambição, inicialmente enigmática ao leitor, se revela enfim ser a de uma ascese; e a ambiguidade da obra, a do objeto sem nome de um conhecimento unitivo (absoluto).

 

Jacques M. LACAN

Notas do tradutor:

[1] Por savantes, entenda-se ‘eruditas’, mas em sentido pejorativo; Lacan refere-se às sociedades científicas de seu tempo.

[2] Lacan refere-se aqui ao atomismo de Wundt, também chamado de associacionismo psicológico, e que baseava-se em descobertas da Química acerca do comportamento dos átomos, que vinculam-se entre si mediante associações para a produção de moléculas. A análise da mente, campo de estudos da psicologia, deveria para Wundt adotar uma orientação teórica semelhante e estudar, analiticamente, a consciência em seu conjunto de sensações, pois essas – semelhantes aos átomos - se associariam para gerar no indivíduo a percepção de si e do mundo – qual seja, a vida psíquica.

[3] Lacan refere-se à sua própria tese de doutorado, Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade (1932).

[4]...sob o modo prático do intuicionismo bergsoniano”: Lacan refere-se ao conceito de intuição em Bergson, que possui um caráter semelhante à noção de ‘intuição intelectual’ postulada por Kant, muito embora a filosofia de Bergson tenha por objetivo justamente a superação da doutrina kantiana. Para Bergson, a defesa da possibilidade de um conhecimento absoluto pela superação das antinomias da razão exigiria o uso da intuição em sua capacidade de síntese, mas não somente a nível prático (como Minkowski parece ter se restringido a utilizar), e sim como modelo de subjetivação do ser e atuação no mundo. Ou seja, a intuição abriria o sujeito para si mesmo e para os outros; ela seria essa própria abertura ao outro. Aberto à intuição, ela o estruturaria (como memória) e o guiaria (como ética).

[5] Como referimos à nota anterior, Lacan provavelmente utiliza a expressão a partir de Kant (i.e.: ‘antinomias da razão pura’), o que significa que não se trata de um juízo depreciativo do ‘irracionalismo’ de Bergson e Minkowski, mas de uma análise das categorias filosóficas utilizadas pelo último, às quais Lacan, como se vê, não adere.

[6] Outra referência à filosofia de Bergson e à compreensão (pouco informada, para Lacan) de suas ideias por parte de Minkowski. A ideia de “duração” [durée], para Bergson, é o dado imediato da consciência como sendo temporalidade em si; a “duração” deve ser considerada como uma multiplicidade qualitativa dos estados de consciência.

[7] De modo semelhante a Henri Bergson, que criticou a mistura das categorias de espaço e tempo na epistemologia kantiana, Minkowski tenta separar as categorias de espaço e tempo em sua elaboração teórica. É a isso que Lacan se refere, ao falar de uma “desespacialização” do tempo.

[8] A medição do tempo é a interrupção de seu fluxo espontâneo e contínuo. Há uma proximidade grande entre essa noção em Minkowski, em Bergson e na psicologia de William James.

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