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a letra e o sonho

KIERKEGAARD: ESISTENZA ED ETICA

Kierkegaard: Existência e ética, por Emmanuel Lévinas*

*no original, "Kierkegaard: Existence et éthique"; tradução para o italiano por Corrado Ameni. A versão disponibilizada aqui é uma tradução da publicação em língua italiana (Levinas, Emmanuel. Kierkegaard, trad. Corrado Ameni, Roma: Castelvecchi, 2013).

 

tradução por Alexandre Marzullo

1. A Verdade Triunfante

A ideia de existência, no sentido forte do termo, isto é, nesse pelo qual o pensamento europeu permanece em dívida com Kierkegaard, consiste em salvaguardar a subjetividade humana – e a dimensão de interioridade que essa desvela – tanto em seu caráter absoluto, em sua separação, em sua manutenção ao lado do Ser objetivo, quanto em sua defesa paradoxal de uma posição irredutível do sujeito contra o idealismo, que todavia lhe havia conferido uma dignidade filosófica a partir de uma experiência pré-filosófica. De fato, por um lado o idealismo chegou ao ponto de reduzir o homem a uma unidade desencarnada e impassível, e sua interioridade à eternidade de um procedimento lógico; por outro, e com Hegel, chegou ao ponto de dissolver o sujeito humano no Ser que esse sujeito revelava. Pois o idealismo pressupunha que tal desdobramento do Ser, operado pelo pensamento, permitiria ao sujeito como que levitar sobre si mesmo, consignando à Razão o seu extremo segredo. A situação era comparável, portanto, à de um pintor que, ao finalizar sua obra, se encontra aprisionado na pintura nascida de seus próprios pinceis, transportado para o mundo que ele mesmo havia criado.

Kierkegaard combateu essa pretensão, objetando que o movimento por meio do qual o idealismo apreendeu a subjetividade foi em si originariamente pensado, isto é, identificava-se com aquela capacidade de “sujeitar-se à tematização” que totaliza as experiências, revelando-as comparáveis e por consequência generalizáveis, até a formação de um Sistema e de uma Ideia a partir de suas diferenças e oposições. Ademais, contestou que a subjetividade se reduzisse à capacidade de comensurar cada ser ao pensador, expressando, ao mesmo tempo, o pensador pelos seres que se plasmam pelo pensamento. Em suma, Kierkegaard contestou que o Ser fosse correlato ao pensamento.

Mas então, em que coisa poderia consistir a subjetividade do sujeito? Kierkegaard não poderia recorrer ao caráter particular do sentir e do fruir, opostos à generosidade do conceito. O estágio que ele chamou de “estético”, no qual ocorre uma dispersão pelos sentidos sensíveis, conduz, de fato, ao beco sem saída da desesperação, onde a subjetividade por fim se perde. Mas no estágio que se apresenta como a outra ponta da alternativa – estágio no qual se trataria de traduzir a vida interior nos termos próprios de uma ordem legal, realizando-a em sociedade, na fidelidade aos princípios e instituições e na comunicação com outros homens, qual seja, no estágio “ético” – o pensamento que totaliza e que generaliza se vê incapaz de englobar em si seu próprio pensador. A exterioridade não tem como coincidir com a interioridade humana: o sujeito custodia um segredo – jamais expresso – que determina sua própria subjetividade. Segredo que não é simplesmente um conhecimento do qual ainda não se fez palavra; ao contrário, ele permanece por si mesmo inexpressável, mas identificado sobretudo com a ferida mordente do pecado. E nenhuma verdade triunfante, nenhuma fórmula racional ou universal se faria capaz de cobri-lo ou de cancelá-lo.

Todavia, essa ferida mordente que não se pode comunicar, esse “espinho na carne”, faz testemunho da subjetividade como uma tensão sobre si mesma na qual se pode reconhecer, ao lado da noção filosófica de subjetividade, um retorno tanto à experiência cristã como também às suas fontes pagãs: a existência hirta, tensionada sobre si mesma, aberta à própria exterioridade com uma atitude de impaciência e prontidão. Mas trata-se de uma impaciência tal que a exterioridade – dos homens e das coisas, pertencentes a um pensamento distensionado e impassível – não consegue satisfazer. E para além dessa sede de salvação, uma tensão mais antiga à alma humana – a qual, talvez por isso mesmo, seja  “naturalmente cristã” –, que se consome em desejos.

A subjetividade recebida como herança desta experiência que remonta à Antiguidade, experiência comum tanto à filosofia da existência quanto à filosofia especulativa, consiste no modo pelo qual um ser produz-se a si mesmo: modo caracterizável pelo fato de que sua identificação consigo próprio não se resolve por meio de uma pura e simples tautologia lógica, capaz de ser dita sobre o ser – trata-se da repetição contida na expressão “A é A” – , e que só poderia, na verdade, deixá-lo indiferente em seu modo próprio de flutuar sobre o nada, ou em seu ímpeto meteórico. Antes, a tautologia se inicia justamente com a emergência desse nada e o faz pela força de seu impulso. Fato primeiro em toda linguagem, a identificação da subjetividade é a descoberta, para o ser, de ter-se em seu próprio ser. A identificação de “A” como “A” corresponde a uma expectativa de “A” em relação a “A”. Ou seja: a subjetividade do sujeito é uma identificação do Mesmo em sua ansiedade pelo Mesmo. É egoísmo. A subjetividade é um Eu.

Ocorre que o pensamento, que o idealismo hegeliano colocava no interior da subjetividade, também observa seu início a partir da orientação egocêntrica do sujeito. O esforço considerável da dialética consistiu em demonstrar a necessidade de converter esse egoísmo em Ser e em Verdade e, por consequência, em trazer à luz um pensamento que adormecia na subjetividade do sujeito. Até que, em um certo ponto, a tensão sobre si mesmo se dissolve para então tornar-se consciente de si; o Eu se percebe no interior de uma totalidade, subsumindo-se sob uma lei geral a partir de uma verdade que triunfa, isto é, que o conduz a um discurso. Eis aí, precisamente, a passagem da subjetividade para a filosofia.

Todavia, percebe-se nesse discurso – nessa possibilidade de falar conquistada a partir de um pensamento totalizante – uma remota impossibilidade do discurso – como a sombra da tarde, avançando sobre um sol de pleno meio-dia; pressente-se, nessa filosofia da totalidade que distensiona o egoísmo subjetivo (e no qual inclui-se, sublime, a sede de salvação), o fim da filosofia, já no limite de um totalitarismo político em cujo âmbito os homens não mais serão a fonte de sua própria linguagem, mas reflexos de um logos impessoal ou, quando muito, meros papeis a serem desempenhados por figuras: eis no que constitui o valor da noção kierkegaardiana de existência e de sua crítica profundamente protestante contra o sistema. Mas também é lícito perguntar, por outro lado: se o retorno a uma subjetividade que descarte o pensamento – e que descarte, em suma, a verdade sempre triunfante; que descarte o pensamento suspeito de mentir e de distrair enquanto pretende aplacar sua própria inquietude; é lícito perguntar se tudo isso não conduziria, afinal, a uma outra violência. Devemos, portanto, nos perguntar se a subjetividade irredutível do ser objetivo não poderia vir a ser compreendida a partir de um princípio diverso de seu próprio egoísmo, se tomarmos o autêntico estágio ético no modo pelo qual Kierkegaard o descreve – qual seja, como generalidade e como equivalência entre exterior e interior. Pois a existência não poderia, ao ver-se colocada para fora do totalitarismo especulativo, encontrar-se igualmente para fora da não-filosofia kierkegaardiana?

 

2.  A verdade perseguida

 

À verdade triunfante, acessível ao saber, e em cujo âmbito a existência teria a ilusão – mas apenas a ilusão – de “resolver-se”, Kierkegaard opõe a fé religiosa, que é autêntica, porque reflete o estatuto incomparável da subjetividade. A fé religiosa não é o conhecimento imperfeito de uma verdade que seria, em si mesma, perfeita e triunfante, capaz de exercer em um salto único sua ação sobre o pensamento de todos, conhecimento de uma verdade apenas incerta; não o é, pois nesse caso a fé religiosa seria uma pura e simples degradação do próprio saber. E a subjetividade, sua portadora, se confundiria com uma opacidade a percorrer o campo ensolarado da exterioridade antes de evanescer.

 

A fé religiosa sinaliza a condição de uma existência que nenhum “para fora” lograria conter, ao mesmo tempo em que a demonstra carente e indigente, miserável de uma miserabilidade radical, de uma miserabilidade irremediável, de uma fome absoluta que é, em última análise, pecado. A fé religiosa está relacionada a uma verdade sofredora. A verdade que sofre e que é perseguida: coisa completamente diversa de uma verdade que é abordada de maneira inadequada. Completamente diferente, ao ponto em que, para Kierkegaard, a verdade dolorosa se exprimiria pela própria manifestação do divino: a simultaneidade entre o Tudo e o Nada [Rien], Relação com uma Pessoa que é, ao mesmo tempo, presente e ausente – com um Deus humilhado que sofre, e que morre, e que deixa em desespero aqueles a quem salva. Certeza que coexiste com a incerteza absoluta, na medida em que se pode perguntar se a Revelação enquanto tal não seria, na realidade, a própria essência dessa verdade crucificada, com o sofrimento de Deus e o desconhecimento da verdade anunciando-se ao nível do sublime como um incognito total.

 

A contradição entre presença e ausência, dentro da qual se mantém a fé religiosa, permanece irreconciliável: é como uma ferida aberta, à guisa de uma hemorragia da qual não se consegue estancar. Por isso, a rejeição da síntese não é, nesse caso, uma debilidade do intelecto. É proporcional, exatamente, a este novo modo de ser da verdade, pois o sofrimento e a humilhação não constituem o resultado de uma aventura que incide sobre a verdade como que por fora dela; antes, eles se inscrevem como a essência mesma da verdade, ou ainda, como aquilo mesmo que nela se perfaz como divino. Razão pela qual a saída de si, a única possível para a subjetividade, é a fé, a solidão do tu-contigo-mesmo com Deus – eis a única forma que Kierkegaard admite para o tu-contigo-mesmo. O salto mortal que a existência realiza ao passar da ausência para a presença exige sempre um recomeçar do zero. Nada está garantido. Fosse produzida uma síntese, o tu-contigo-mesmo seria interrompido. Neste caso, isso é algo que pode ser dito. E então a subjetividade perderia sua tensão de si mesma, sua contração, seu egoísmo radical, entraria na exterioridade e na generalidade. Tornar-se-ia filosofia ou Vida Futura. Mas na fé religiosa, a existência se aproxima do reconhecimento, tal como a consciência em Hegel. Ela anseia por esse reconhecimento, quando se aproxima do perdão e da salvação; esse reconhecimento, contudo, lhe será concedido apenas por uma verdade ela mesma humilhada e não-reconhecida, sempre por reconhecer – coisa que o subjetivismo da subjetividade jamais realiza.

A seu tempo, a ideia de uma verdade sofredora transforma tudo o que cerca a verdade – todas as suas relações com a exterioridade – em um drama interior. Ela se manifesta, no confronto com o externo, através de uma atitude de indiscrição e de escândalo. Seu discurso voltado ao externo é colérico, cheio de invectivas. É sem piedade. A verdade que sofre não revela outros homens ao homem, mas Deus em sua solidão. Essa existência, cuja interioridade é grande demais para a exterioridade, e nela não encontra acesso, situa-se em larga medida na violência do mundo moderno, e em seu culto do Ardor e da Paixão. Comporta aí uma irresponsabilidade, um fermento de desintegração. Acompanha filósofos malditos, ou maledicentes, bem como poetas malditos. Mas também poderíamos nos perguntar se a exaltação da pura fé, correlata à verdade crucifixa (e da qual, aliás, ninguém elaborou sua “fenomenologia” com maior rigor do que Kierkegaard) não realizaria, por mérito próprio, a extrema consequência daquela tensão ainda natural do ser sobre si mesmo, que mais acima chamamos de egoísmo, e que não seria propriamente uma debilidade infeliz do sujeito, mas antes a sua própria ontologia – tal como se pode encontrar na sexta proposição da Parte III da Ética de Spinoza: “Todos os seres, na medida do possível, sempre farão todos os esforços para se preservarem enquanto seres”, bem como na fórmula heideggeriana sobre “a existência que existe” de modo tal que “essa existência dependerá de sua própria existência”.

A filosofia de Kierkegaard alcançou um efeito tão profundo sobre o pensamento contemporâneo que mesmo as reservas e a rejeição que ela porventura possa suscitar constituem-se, regularmente, como o testemunho de uma das modalidades de sua influência. O fascínio do último Heidegger deriva, em parte, do estilo rigorosamente ontológico com que ele tratou o pensamento sobre o Ser. O último Heidegger conseguiu se opor com tanta força ao subjetivismo kierkegaardiano unicamente porque percorreu ao cabo e ao fundo a aventura da existência, contribuindo talvez de modo inédito, em Ser e tempo, em elevar à dignidade das categorias filosóficas as noções que, em Kierkegaard, conservaram-se sob o signo de manifestações subjetivas. Pelo mesmo motivo, o retorno ao pensamento hegeliano e o encanto que esse exercita não derivam apenas dos fundamentos por ele oferecidos às grandes problemáticas políticas da atualidade, que preocupam os proponentes e adversários do marxismo, ou seja, toda a humanidade pensante de meados do século XX. O neo-hegelianismo propõe-se como algo de uma dignidade particular por conta de sua reação contra o subjetivismo exasperado da existência. Apenas ocorre que, cem anos depois da crítica kierkegaardiana, esperar-se-ia que fossemos além de tal pathos. Uma visível falta de pudores substitui, lentamente, as “distrações” que, dentro da noção pascalina de divertissement, Kierkegaard denunciara nos sistemas.

Podemos nos indagar se a autenticidade, da qual Kierkegaard nos proveu novos contornos, não comportaria, tanto no caso quanto em certo sentido, o esquecimento e a remoção dessa tensão do ser sobre si mesmo, na qual consiste a subjetividade kierkegaardiana. E ainda, se uma tal renúncia a si não deveria ser, afinal, contemporânea àquela preocupação de salvação da qual a filosofia sistemática costuma se livrar de modo bastante conveniente. 

 

No diálogo entre Anima e Animus, entre a alma individual e sensível e o Espírito universal, a voz do Espírito parece-nos – inclusive em sua forma hegeliana – limitar os comprazeres que a Alma e sua interioridade costumam ter consigo mesmas. 

 

O apelo ao Ser dos entes, que revelará e suscitará a subjetividade humana unicamente a partir de sua verdade e de seu mistério, bem como o apelo à estrutura impessoal do Espírito, para além de toda arbitrariedade e imaginação, assumem acentos viris e inexoráveis, aos quais podem ser sensíveis os homens que saem da experiência existencialista, e não apenas no modo pelo qual podem vir a ser sensíveis a uma mudança de ambiente, mas sobretudo no modo pelo qual pode-se amar aquilo que nos é familiar. O pensamento kierkegaardiano realizou, assim, sua contribuição com uma veemência intransigente, com seu apreço pelo escândalo. Inaugurou, em todos os casos, uma entonação nova na filosofia, que Nietzsche mesmo viria a reivindicar quando se pôs a filosofar “a golpes de martelo”. A dureza e a agressividade de um pensamento que até então havia qualificado certo tipo de ação – caracterizada por pouquíssimos escrúpulos e por um grandíssimo realismo – justificariam, agora, esta violência e este terrorismo. Não se trata apenas de sua forma literária. A violência nasce no próprio Kierkegaard no instante em que, superando o estágio “estético”, a existência não consegue manter-se no estágio “ético”, ingressando então no estágio “religioso”, a dimensão da fé religiosa. E essa última já não se justifica mais a uma exterioridade. Mesmo em sua interioridade, ela é ao mesmo tempo comunicação e solitude, e consequentemente, violência e paixão. E é assim que se inicia o desprezo pelo fundamento ético do ser, de caráter sempre secundário em todo fenômeno ético, e que, atravessando Nietzsche, nos conduz ao amoralismo das filosofias mais recentes.

 

3. A Diaconia

Toda a polêmica entre Kierkegaard e a filosofia especulativa pressupõe a subjetividade em tensão sobre si mesma, a existência como a atenção que um ser assume pela própria existência e como um tormento para si próprio. A dimensão ética se identifica, para Kierkegaard, com a dimensão desta generalidade. A singularidade do Eu estaria perdida diante da regra válida para todos. A generalidade não pode nem conter nem exprimir o segredo do Eu, infinitamente indigente e angustiado em si mesmo. No entanto, será que o contato com o Outro [Autrui] implicaria necessariamente em um entrar e perder-se na generalidade? Eis o que se deve perguntar, tanto contra Kierkegaard quanto contra Hegel. O contato com a exterioridade não pode constituir uma totalidade de partes que nos serão comparáveis e generalizáveis, e não porque o Eu continue a conservar seu próprio segredo na interioridade do sistema: o que está em jogo é, sobremodo e por outro lado, o fato de que a exterioridade, na qual os homens mostram suas próprias faces, faz explodir a totalidade. Essa explosão do sistema a partir de outro homem [Autrui] não é uma imagem apocalíptica, é a impossibilidade em si mesma, na qual se encontra o pensamento que reduz toda alteridade ao mesmo, diminuindo os outros homens. Impossibilidade, portanto, que não se limita ao seu significado negativo, mas que imediatamente põe em discussão o Eu. E o que está nessa discussão é a responsabilidade do Eu com o Outro. A subjetividade é esta responsabilidade, e apenas uma subjetividade irredutível pode assumir tal responsabilidade. A ética é propriamente isto. 

 

Ser Eu significa, por conseguinte, não poder se desfazer de tal responsabilidade. Essa sobrecarga do ser, esse exagero existencial que se chama ser eu – esta saliência da ipseidade no ser – se coloca como uma florescência da responsabilidade. O questionamento acerca do eu em face do Outro é uma tensão nova sobre o Eu, mas não é uma tensão sobre si mesmo. Pois em vez de aniquilar o Eu, tal debate o torna solidário ao Outro, de forma incomparável e única. Solidário, não como a matéria é solidária em relação ao bloco da qual faz parte, ou como um órgão a respeito do organismo onde exerce suas funções. Essa solidariedade, afinal, mecânica e orgânica, dissolveria o Eu em uma totalidade. O Eu é solidário com o não-eu de um modo como se todo o fado do Outro estivesse em suas mãos. A unidade do Eu consiste no fato de que ninguém pode responder em seu lugar. Ao colocar em debate o Eu diante do Outro, não se trata de estabelecer a originariedade de um ato de reflexão mediante o qual o Eu assurge, pairando sobre si mesmo em toda glória e serenidade, e tampouco de introduzir no Eu um discurso suprapessoal, coerente e universal. O ponto que se abre em discussão sobre o Eu diante do Outro é, ipso facto, uma escolha: sua promoção a uma posição privilegiada, onde tudo dependerá daquilo que não seja eu. 

 

Essa escolha implica um empenho o mais radical possível, um altruísmo total. A responsabilidade, que esvazia o Eu de seu imperialismo e de seu egoísmo, e mesmo de seu egoísmo da salvação, não o transforma em um momento da ordem universal. Ela o confirma, antes, em sua ipseidade, em seu lugar central no ser, sustentando o universo. O Eu diante do Outro é infinitamente responsável. O Outro é miserável e indigente, e nada que se possa dizer a respeito deste Estrangeiro pode deixar o Eu indiferente. Ao contrário, o Eu alcança o apogeu de sua existência como eu mesmo quando tudo, no Outro, lhe dizer respeito. A plenitude do poder através do qual a soberania do Eu se mantém não se estende ao Outro para conquistá-lo, mas sim para sustentá-lo. Mas nesse mesmo diapasão, sustentar o peso do Outro significa confirmá-lo em sua substancialidade, colocando-o acima do Eu. O Eu permanece responsável pela propriedade desse peso, contra aquele que ele mesmo sustenta. Aquele de quem devo dar resposta é aquele mesmo a quem devo responder. O “de quem...” e o “a quem...” coincidem. É este duplo movimento da responsabilidade que indica a dimensão própria da elevação. Isto me impede de exercitar esta responsabilidade como piedade, posto que devo prestar contas para aquele mesmo ao qual me responsabilizo. E impede-me de exercitar esta responsabilidade como obediência incondicionada ao íntimo de uma ordem hierárquica, pois é para aquele que me comanda que eu me faço responsável. 

 

Kierkegaard tem certa predileção pelo relato bíblico do sacrifício de Isaac. Assim ele descreve, nos seguintes termos, o encontro com Deus por uma subjetividade que se eleva ao nível religioso: Deus sobrepaira acima da ordem ética! Decerto, sua interpretação pode indubitavelmente ser tomada de outra forma. Talvez a escuta que Abraão deu à voz que o reconduzia à ordem ética seja o momento mais alto daquele drama. Mas Kierkegaard jamais comenta sobre a cena na qual Abraão entra em diálogo com Deus, para interceder em favor de Sodoma e Gomorra, em nome dos justos que porventura se encontrassem ali. Naquele ponto, Abraão se coloca como plenamente consciente de sua nulidade e de sua mortalidade; as suas palavras: “Somos cinzas e pó” praticamente abrem o colóquio, e a chama destrutiva da cólera divina arde diante dos olhos de Abraão ao longo de todas as suas intervenções. No entanto, a morte não tem poder, porque a vida recebe um sentido a partir de uma responsabilidade infinita, a partir de uma diaconia profunda, que constitui a subjetividade do sujeito, e sem a qual essa responsabilidade, totalmente tesa que está diante do Outro, perde a disponibilidade de voltar-se a si mesma. 

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